quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O nosso tempo


“Deus está morto!”
Assim falou Zaratustra -  Friedrich Nietzsche





“É preciso ser superior à humanidade em força, em altura de alma – em desprezo…”
 O Anticristo -  Friedrich Nietzsche






 O nosso tempo


 “E se a nossa história – toda a história humana – narrasse uma perseguição, perseguição imparável que exprime uma busca íntima? “ [1]

            O tempo é um instante. O tempo é um tempo; o tempo somos nós.
Talvez Bauman [2] identificasse de imediato o parágrafo anterior sendo referente aos líquidos, à sua expressão de modernidade líquida, dotando-os de uma característica temporal inata, ao mesmo tempo que personaliza os sólidos sem significação do tempo. Aos líquidos “o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar”[3]Aos líquidos o que realmente importa é a perseguição do tempo; a sua perseguição.
Com o advento do cinema foi-nos dada a possibilidade de perseguirmos a nossa imortalidade, de não ficarmos sólidos, estáticos, imóveis, parados, apenas perseguindo uma entidade quer divina, quer política. Acabou a corrida desenfreada ao espaço, acabou a perseguição a um Deus que com os tempos se tem observado que mais não foi do que um dínamo para o ódio e para a perseguição alheia. Esse tipo de perseguição patrocinado apenas por agentes estáticos, os sólidos.

“E se a nossa história – toda a história humana – narrasse uma perseguição (…)? “

            A perseguição cansou-se de ser feita a uma entidade plena ou definitiva que causava a morte da Humanidade. A possibilidade que o cinema levantou foi apenas a possibilidade de análise temporal, a compreensão que não há um sujeito que se persegue, mas que a fuga do Homem passou a ser o tempo. O nosso percurso enquanto civilização só conseguirá mudar quando deixar de haver a dicotomia entre presa e predador. Os líquidos passam a ter a ferramenta mais poderosa, o tempo.
  
A identidade

            No fim de definirmos que o tempo passa a ser nosso, abalamos de imediato todas as verdades Universais, passamos a ser donos da nossa verdade. Cada um com a sua pequena verdade, muitas vezes contraditória entre si, mas haverá indivíduo mais democrata que este? Alguém que é capaz de analisar, ouvir e discutir todas as verdades em vez de tentar impor a sua verdade a toda a gente. Um líquido, a ser um líquido.
            A “crise de identidade” e o sujeito desfragmentado referido por Stuart Hall [4] passa a ser uma não questão, pois não podemos olhar para um novo paradigma social com os olhos de um sólido, apenas um líquido sabe o que é fazer parte de um rio ou de um oceano. Se é considerado um desfragmentado devido à sua classe, género, sexualidade, etnia, raça ou nacionalidade é porque em tempos houve a necessidade dos sólidos catalogarem este mundo e o outro. Uma catalogação exaustiva a roçar os limites da liberdade individual.

“Busca da qualidade de vida, paixão da personalidade, sensibilidade extrema, desafeição dos grandes sistemas de sentido, culto da participação e da expressão, moda retro, reabilitação do local, do regional (…)” [5]

            Será que em algum destes pontos se encontra uma fraqueza? Quem não quer encontrar qualidade de vida, personalidade, sensibilidade e participação? No que diz respeito à reabilitação do local e do regional tem muito que ver com a dimensão geopolítica, sendo que a minha pequena verdade, como cidadã portuguesa, é que essa vontade é bastante esbatida com a oferta cultural centralizada nos grandes centros, como Lisboa e Porto. 
            É verdade que como Gilles Lipovetsky também afirma “A sociedade pós-moderna é a sociedade em que reina a indiferença em massa.”. Essa indiferença não se deve ao cultivo do tempo individual, acho que se deve às instituições públicas e privadas que não acompanham os líquidos. Aceito que talvez nunca tenha havido uma crise de identidade tão grande, mas também nunca houve uma abertura tão grande da sociedade em tudo; psicólogos, psicanalistas, etc… tentam que nos esvaziemos. Os líquidos ainda não tiveram consciência de si, viram barragens a serem construídas, fábricas a poluírem os seus caudais, mal os líquidos passaram a ser líquidos foram aprisionados pelo pensamento dos sólidos. O mundo começou por ser líquido, mas à medida que as leis e a deturpação “do bom selvagem”[6] tomavam lugar, os movimentos tectónicos geraram grandes cordilheiras de agentes sólidos, como aqueles que vimos no início do século passado.
            As revoluções a que Bauman assiste e relata como as revoluções que deram origem à modernidade líquida, apenas foram revoluções políticas. Acredito que ela tenha nascido daí, mas também assisto e sinto que a modernidade líquida está incompleta, a revolução deveria ter sido cultural acima de tudo. Hoje, neste meio assisto a essa modernidade como parte integrante dela, e acho que esse ponto me dá vantagem e me deixa ir ao fundo dos oceanos. Alguns sólidos caíram e muitos deles ainda vão continuar aí, o que os líquidos ainda não aprenderam é a valorizar-se, um rio tem muito mais força que um muro! Como diz o velho ditado: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura!”.  Há que despoluir as águas, o pensamento não tem que correr num só sentido, mas tem que ser limpo, tem de ser claro e natural.
  
A sociedade

“Este mundo é um lugar de labuta. Que azáfama! Sou acordado todas as noites pelo arquejar da locomotiva. Isso interrompe os meus sonhos. Não existe sabat. Seria magnífico ver a humanidade, por uma vez, desfrutar do lazer. Já só há trabalho, trabalho e mais trabalho. Já não é fácil comprar um caderno liso para escrever as minhas reflexões; agora são quase todos pautados para inscrever os dólares e os cêntimos.”[7]

É com este tipo de filosofia que os líquidos são tidos como modernos, não obstante que a sua inspiração tem raízes românticas, fins do séc. XVIII, onde talvez muitos “sólidos” europeus se viram no fio da navalha ao ler pela primeira vez Werther de Goethe [8]. E não foram tão ou mais românticos que os ditos líquidos modernos?  Só que nessa altura a revolução foi cultural, tornando o Homem mais seguro de si, das suas convicções, apoiado num pensamento da época .
As correntes do estado novo, não propriamente em Portugal, mas de todas as opressões que tiveram lugar na Europa e no mundo deixaram uma nuvem no ar e na água, de tal forma densa que ninguém, nem mesmo os líquidos, os sólidos, os líquidos com pretensões a sólidos ou os sólidos com pretensões a líquidos conseguiram vislumbrar que as reformas a seguir ao nosso 74 caíram apenas no domínio politico, não conseguindo ser extrapolado para a dimensão social ou cultural, infelizmente.
O mundo continua nesta fase de transformação que não cai nem para um lado nem para o outro, encontra-se em cima do muro. Por um lado, os líquidos são muitos, mas estão de olhos vendados face aos anos de poluição e às barragens que lhes construíram, quer no sistema de educação antiquado ou ao sistema capitalista que desviou a cultura para uma vertente de “cadernos pautados apenas”; por outro estão os sólidos, que poucas soluções arranjam, obstruem o caminho dos líquidos e tiram partido das águas poluídas.

“Se um homem passear nos bosques por amor a estes durante metade de cada dia, arrisca-se a que o vejam como um mandrião; mas se passar todo o dia em atividades especulativas, arrasando as florestas para tornar a terra nua antes de tempo, será considerado um cidadão diligente e empreendedor. Como se o único interesse que uma cidade tivesse nos seus bosques fosse cortá-los” [9]

            Voltando ao cinema, o que se começa a passar nestes novos tempos, onde existe uma modernidade líquida em défice de “bem-estar social”, não poderia ser ultrapassado por qualquer narrativa fantástica. A crescente extrema na europa, um presidente de Hollywood numa das grandes superpotências mundiais, mostra bem que o mundo começou a polarizar-se. Talvez esta guerra entre sólidos e líquidos esteja a ir longe demais. Se identificarmos os sólidos exclusivamente como detentores de um sistema capitalista, onde não lhes importa a cultura, mas sim o lucro que provém disso, direta ou indiretamente, como o controlo dos líquidos via entretenimento. O vislumbre de um “Admirável Mundo Novo”, com certos traços de “1984” sem dúvida, mas na sua essência o “Nós” de Zamyatine aponta-nos para a dificuldade de haver uma sociedade perfeita, onde um personagem chora pela primeira vez ao não conseguir calcular a raiz quadrada de menos um.
            Estas ondas de populismo, vêm por parte de indivíduos “sólidos” radicais e por parte de “líquidos” que não estão informados necessariamente e que o seu ego está preso algures numa barragem, não conseguindo ter nascido com a cultura do seu lado, com o apoio da corrente ou com o espírito crítico que nasce de dentro. Os sólidos que conhecem demais o mundo e os líquidos que não fazem a mínima ideia, estão de mãos dadas e a empurrar a modernidade para um lugar estranho e sombrio.

Conclusão

            Devemos apontar soluções em vez de apenas registarmos os traços gerais da sociedade e do indivíduo e de criticarmos o que nos rodeia para que assim possamos contribuir para um mundo melhor.
            Se os líquidos estão descontentes com as políticas ou até indiferentes, talvez seja a altura de pensar num modelo de democracia mais direta e menos representativa, onde haja espaço para as revoluções culturais e socias que faltam existir; contribuir e investir para uma modernidade mais consciente de si, mesmo com o culto do lazer, fazer distinguir entre entretenimento e arte, no cinema por exemplo, falo das diferenças de um filme hollywoodesco e de um filme independente. É necessário que estes “tempos” que aí vêm sejam vistos e revistos, que se aprenda com os pequenos erros e com as pequenas verdades individuais; é um excelente tempo para que os líquidos e os sólidos conscientes consigam derrubar as barragens e muros do pensamento e encontrar o oásis da inclusão. Não vivemos num mundo exclusivamente destes dois elementos, existem muitos mais, até transformações são possíveis, passar de líquido a gasoso ou de sólido a líquido, mas não quer dizer que um vence sobre o outro, quer dizer que aprenderam com as pequenas verdades de cada um e consequentemente a viver em simultâneo; e é dessa transformação que é feita o mundo, desde que seja consciente e livre, claro.    


“Tenho a esperança de que venceremos. Mais do que isso, tenho a certeza de que a vitória é nossa. Porque a racionalidade tem que triunfar.”[10]







Bibliografia

FRIEDRICH NIETZSCHE, 2008, Assim falou Zaratustra, Publicações Europa-América

FRIEDRICH NIETZSCHE, 2000, O Anticristo, Relógio de água

 TOMÁS MAIA, O Olho Divino, 2016, Beckett e o Cinema, Documenta

ZYGMUNT BAUMAN,  Modernidade Líquida, « Pág. 8.»

STUART HALL, [1992] 2003, A identidade em Questão, «pp. 7-22»,. Rio de Janeiro, DP&A Editores 
LIPOVESTSKY, 1989, A Era Do Vazio, «Pág 12»

HENRY DAVID THOREAU,2016, A Vida sem Princípios, «pág.20/21», Antígona

ZAMIATINE, 2004,«pág.274», Nós, Antígona





[1] “O Olho Divino – BECKETT E O CINEMA” Tomás Maia 
[2] Zygmunt Bauman (1925/2017) Autor e escritor da obra “Modernidade Líquida 
[3] “Modernidade Líquida” Pág. 8. Zygmunt Bauman  
[4] Stuart Hall, [1992] 2003, “A identidade em Questão”, A Identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editores, pp. 7-22. 
[5]A Era Do Vazio”. Pág 12 . Gilles  Lipovetsky (1989) 
[6] O bom selvagem ou mito do bom selvagem é um personagem modelo ou tópico literário na literatura e no pensamento europeu da Idade Moderna, que nasce com o contacto com as populações indígenas da América.Trata-se de casos nos quais escritores colocavam o homem em primeira opção, em lugar de Deus.” - https://pt.wikipedia.org/wiki/Bom_selvagem 
[7]  [9] “A Vida sem Princípio” pág.20/21 – Henry David Thoreau 
[8] O romance é escrito na terceira pessoa e com poucas personagens. Após a sua primeira publicação, em 1774, teria ocorrido, na Europa, uma onda de suicídios, atribuída à influência do personagem de Goethe, e que foi chamada "efeito Werther". - https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Sofrimentos_do_Jovem_Werther
[10] “Nós” pág.274 - Zamiatine

Sem comentários:

Enviar um comentário