Exposição
Rui
Chafes “O Peso do Paraíso”
Centro
de Arte Moderna José
de Azeredo Perdigão
Rui
Chafes nasceu em Lisboa em 1966 e formou-se em Escultura na Faculdade de
Belas-Artes de Lisboa em 1989, tendo aprendido com António
Trindade, Professor de metais extraordinário, segundo palavras suas, que lhe
ensinou tudo o que sabia.
Depois
das Belas-Artes foi para Dusseldorf - a cultura alemã sempre o interessou
profundamente - onde frequentou a Kunstakademie, sob a orientação do artista alemão
Gerhard Merz.
Num
percurso consolidado, expõe regularmente desde os anos 80, quando foi
considerado pela Revista K, um génio.
As suas primeiras exposições individuais
na Galeria Leo, 1986 e 1987, e no espaço Poligrupo Renascença, em 1988, definem
um período inicial marcado pela criação de instalações nas quais usava materiais
variados, como troncos, canas, fitas de platex, ripas de madeira e plástico,
que viria a abandonar depois de uma breve passagem pela pedra, a favor do uso
exclusivo do ferro pintado de preto, convocando para o seu trabalho a
experiência física da sua configuração, alquímica e industrial.
O
universo da sua obra transporta-nos para o mundo nostálgico e exacerbado do romantismo alemão, reflectido nos títulos que escolhe, com palavras como
"sonho", "morte", "manhã", "ferida",
entre outras, materializando estas palavras no seu material de eleição, o
ferro.
O
"lugar" da escultura é também uma constante na obra de Rui Chafes, realizando esculturas de chão, de tecto, penduradas nas paredes, ocupando lugares
inesperados, ao ar livre e, por vezes, empoleiradas em árvores com os pássaros.
A
partir da escultura e do desenho - faceta da sua produção artística que Rui
Chafes mantém com regularidade diária desde o início do seu percurso - podemos
ver como conceitos como o informe e às vezes o repulsivo, surgem na sua obra
numa tentativa permanente da conquista da desmaterialização tal como concebida
pela arquitectura gótica.
Na
sua autobiografia, escrita por ocasião do Ciclo “100 Lições” no Centenário da
Universidade de Lisboa, em 2011, Rui Chafes coloca-se a si próprio, qual
“Orlando” de Virgínia Wolf, a percorrer séculos de história de arte, vivendo em
diferentes épocas e países, trabalhando com vários Mestres, numa épica metáfora para dar conta da sua aprendizagem, da sua evolução e finalmente do encontro de si próprio como artista.
E
nós acreditamos.
A
exposição no Centro de Arte Moderna (CAM) José de Azeredo Perdigão construiu um
percurso, em que o artista criou um universo singular em permanente
inquietação, com mais de 100 obras, algumas inéditas ou nunca expostas em
Portugal, depois de acontecimentos semelhantes em Itália e no Brasil.
Figura de destaque do movimento de retorno à escultura que se verificou
nos finais do século XX, Rui Chafes é um dos mais importantes artistas da sua geração e, ocupou com esta exposição antológica, tanto o interior como o exterior do Centro
de Arte Moderna, ao prolongar-se pelo jardim.
Was soll ich tun wenn du nicht da bist, 2004
Ferro pintado
Ferro pintado
No
percurso pela nave central do CAM atinge-nos o assombro mas também uma sensação
de recolhimento e intimidade. O trabalho de Rui Chafes é solene e carregado de
sentimentos nem sempre luminosos, quando mergulhados na obscuridade.
O
peso a fluir, o movimento suspenso, o tempo parado são contradições que nos
incomodam, inquietam mas ao mesmo tempo nos fazem sentir uma tranquilidade
etérea. É como se a alma mais sinistra se manifestasse pela mais acentuada
leveza.
As
esculturas vão-nos contando histórias através de uma leveza e delicadeza
desconcertantes se tivermos em conta a matéria pesada e primária de que são
feitas - o ferro, e, em muitas peças, o seu tamanho imponente.
O
ferro, um dos elementos mais abundantes do Universo, dando nome a um período da
história, tem uma componente fortemente orgânica, do interior do núcleo
terrestre, possuindo uma capacidade para se alterar de estado líquido a sólido
e de sólido a líquido, assumindo transformações, que são o ADN das esculturas
de Rui Chafes.
Esta
componente fortemente tradicional e romântica, aliada às influências em termos
formais do minimalismo e da arte conceptual, são trabalhadas de uma forma única
e marcadamente autoral por Rui Chafes, de tal modo que quando vemos uma escultura
sua, sabemos que estamos perante uma obra indiscutivelmente sua.
A
antologia no CAM mostrou a dicotomia presente em toda a obra de Rui Chafes: o
leve e o pesado, o dentro e o fora, o agarrado ao chão e o que se liberta deste
suspendendo-se no ar, a vida e a morte, o sofrimento e a libertação.
As
esculturas são matéria, são corpos pintados de negro; muitas delas têm como
ponto de partida o corpo, sólido e material, evoluindo depois para formas
misteriosas que se nos impõem ao olhar e nos atingem, não sendo possível jamais
nos libertarmos delas.
Agarradas
à terra, a flutuar no ar ou partindo das paredes, as esculturas de Rui Chafes
são às vezes atravessadas pela luz, realçando ainda mais a característica
fundamental do seu trabalho: transformar um material pesado e bruto como o
ferro, em formas orgânicas de espantosa subtileza e espiritualidade.
Baseando-se
no princípio da ilusão e da falsa leveza, as suas obras não deixam ninguém
indiferente.
Na escultura Durante o Sono esse efeito de leveza
e anti-gravidade é levado ao extremo. Nesta obra, é explorada a falsa leveza até
ao limite de tal forma que quando começamos a olhar a peça ela nos parece um
acto de magia, tal a impossibilidade do que vemos, transportando-nos a um nível
não real.
Aos nossos olhos surge-nos uma manifestação do mundo para além
do visível. Um lugar entre a consciência e o arrebatamento.
A esfera negra e pesada parece flutuar e apetece tocar-lhe pois
temos a certeza de que vai iniciar um movimento e ficar a pairar aos nossos
olhos. Dela caiem filamentos que tecnicamente a suportam, contactando com o
chão que encontram, resistindo à nossa compreensão.
Durante o Sono, 2002
Ferro pintado
Durante o Sono diz-nos que o que se
passa enquanto dormimos é incompreensível não podendo ser submetido a qualquer
justificação cognitiva. Durante o sono sonhamos e esta capacidade é infinita
enquanto vivemos, é o nosso lado obscuro e inexplicável.
A esfera negra
representa esse mundo indecifrável e imenso em que mergulhamos quando dormimos.
Dela saem suportes físicos do volume que se eleva; movimento e repouso - mais
uma dicotomia - num enlace fatal e indissolúvel em que o tempo se suspende.
O
equilíbrio é desconcertante pois a relação do peso da esfera com a fragilidade
da gravidade invertida, é surpreendente.
A
escultura Secreta Soberania (Quando te vejo o mundo à nossa volta deixa, por
momentos, de existir) faz parte das peças marcadas pela influência
medieval que figuram não nos cânones típicos de uma cultura urbana, mas sim em
outros inspirados numa tradição de cavalaria que há muito tempo de extinguiu na
Europa.
Secreta Soberania (Quando te vejo o mundo à nossa volta deixa, por momentos, de existir), 2002
Ferro pintado
Esta
obra é um Corpo armadura sem cavaleiro dentro, melancolicamente suspensa no
arvoredo, armadilhada num tempo passado.
A
integração desta escultura no exterior é uma intervenção artificial, reforçada
pela presença da natureza envolvente, diferenciando e enaltecendo a própria
natureza.
A peça está ao sabor do vento, do sol, dos pássaros. A materialidade
do ferro associada ao ambiente natural provoca-nos estranheza e é extremamente poética.
Ao
depararmo-nos com esta escultura, apetece andar à volta dela, espreitar por
baixo, crescer mais um metro para entrarmos, nela qual pássaro em gaiola aberta.
Há
aqui um peso marcado pela forma como a escultura é fechada e aberta ao mesmo
tempo, é prisão e liberdade, sendo possível protegermo-nos dentro dela e regressarmos
ao mundo exterior quando for altura.
As tiras de
ferro cruzadas, são trespassadas pela luz, contrariando o interior sombrio sugerido
pelo gradeamento da quadrícula. O aspecto bélico remete-nos para sons de batalhas,
de espadas a serem desembainhadas, de cavalos a correr.
Gombrich
diz, “Não existe realmente algo a que se chame Arte. Existem apenas
artistas.”
Esta
ideia remete-nos para a constatação de que os artistas produzem algo que nos
provoca sentimentos e que através destes sentimentos definimos a arte; são eles
que nos permitem emocionar, que nos permitem sentir.
Tal
como diz Marcel Duchamp, é através do espectador que a obra do artista ganha
contacto com o mundo e passa a existir como arte fazendo o espectador parte do
acto criativo através das suas interpretações e pensamentos.
Rui
Chafes também acredita que a obra de arte é feita sobretudo para o espectador e
é complementada pelo olhar de quem a vê, que a obra de arte só existe quando é
vista pelos outros.
Segundo
as suas palavras, desde que tem consciência de si próprio que Rui Chafes se
lembra de ser escultor, de desenhar. Não procurou o que faz, o que faz já
nasceu com ele. E isso é perceptível quando estamos perante as suas esculturas.
Rui
Chafes é um artista puro. As suas obras têm vida própria sendo o artista um
meio para lhes dar existência, passando as obras a ocupar um lugar no mundo à
parte do seu criador. Citando-o: “... só
faço as esculturas, o resto é obedecer, obedecer a vozes superiores que me
dizem o que fazer. Sou um mero artesão dessas vozes superiores, que me dizem
para fazer formas que não entendo”.
As
suas esculturas são um acontecimento no espaço, com uma presença tão marcante
que, o que as envolve impõe-se amplo, vazio e silencioso.
A
compreensão da natureza associada à capacidade do domínio da matéria, do espaço
e da escala tornam a obra de Rui Chafes esmagadora na sua envolvência e
singularidade. No seu trabalho reconhece-se o seu corpo e a sua alma que se
reflectem numa obra forte, intensa, verdadeira e por tudo isto intemporal.
Criar
uma escultura é criar um objecto até aí inexistente e que vai ter que encontrar
o seu lugar no mundo, independente de suportes ou referências; uma escultura é
algo que nunca existiu e que passa a estar presente.
O
desafio da gravidade latente e o domínio espacial de cada escultura de Rui
Chafes é tão forte, que torna cada uma delas num acontecimento estético, fazendo
desta exposição um dos acontecimentos artísticos do ano.
Bibliografia
CHAFES,
Rui (2013), “Um Sopro (esculturas 1998-2002)”, Porto, Galeria Graça Brandão,
2003
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