sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

                Exposição
Rui Chafes “O Peso do Paraíso”
Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão  






Rui Chafes nasceu em Lisboa em 1966 e formou-se em Escultura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa em 1989, tendo aprendido com António Trindade, Professor de metais extraordinário, segundo palavras suas, que lhe ensinou tudo o que sabia.
Depois das Belas-Artes foi para Dusseldorf - a cultura alemã sempre o interessou profundamente - onde frequentou a Kunstakademie, sob a orientação do artista alemão Gerhard Merz.
Num percurso consolidado, expõe regularmente desde os anos 80, quando foi considerado pela Revista K, um génio. 
As suas primeiras exposições individuais na Galeria Leo, 1986 e 1987, e no espaço Poligrupo Renascença, em 1988, definem um período inicial marcado pela criação de instalações nas quais usava materiais variados, como troncos, canas, fitas de platex, ripas de madeira e plástico, que viria a abandonar depois de uma breve passagem pela pedra, a favor do uso exclusivo do ferro pintado de preto, convocando para o seu trabalho a experiência física da sua configuração, alquímica e industrial.

O universo da sua obra transporta-nos para o mundo nostálgico e exacerbado do romantismo alemão, reflectido nos títulos que escolhe, com palavras como "sonho", "morte", "manhã", "ferida", entre outras, materializando estas palavras no seu material de eleição, o ferro.

O "lugar" da escultura é também uma constante na obra de Rui Chafes, realizando esculturas de chão, de tecto, penduradas nas paredes, ocupando lugares inesperados, ao ar livre e, por vezes, empoleiradas em árvores com os pássaros.

A partir da escultura e do desenho - faceta da sua produção artística que Rui Chafes mantém com regularidade diária desde o início do seu percurso - podemos ver como conceitos como o informe e às vezes o repulsivo, surgem na sua obra numa tentativa permanente da conquista da desmaterialização tal como concebida pela arquitectura gótica.

Na sua autobiografia, escrita por ocasião do Ciclo “100 Lições” no Centenário da Universidade de Lisboa, em 2011, Rui Chafes coloca-se a si próprio, qual “Orlando” de Virgínia Wolf, a percorrer séculos de história de arte, vivendo em diferentes épocas e países, trabalhando com vários Mestres, numa épica metáfora para dar conta da sua aprendizagem, da sua evolução e finalmente do encontro de si próprio como artista.
E nós acreditamos.


A exposição no Centro de Arte Moderna (CAM) José de Azeredo Perdigão construiu um percurso, em que o artista criou um universo singular em permanente inquietação, com mais de 100 obras, algumas inéditas ou nunca expostas em Portugal, depois de acontecimentos semelhantes em Itália e no Brasil.
Figura de destaque do movimento de retorno à escultura que se verificou nos finais do século XX, Rui Chafes é um dos mais importantes artistas da sua geração e, ocupou com esta exposição antológica, tanto o interior como o exterior do Centro de Arte Moderna, ao prolongar-se pelo jardim.

Was soll ich tun wenn du nicht da bist, 2004
Ferro pintado























No percurso pela nave central do CAM atinge-nos o assombro mas também uma sensação de recolhimento e intimidade. O trabalho de Rui Chafes é solene e carregado de sentimentos nem sempre luminosos, quando mergulhados na obscuridade.
O peso a fluir, o movimento suspenso, o tempo parado são contradições que nos incomodam, inquietam mas ao mesmo tempo nos fazem sentir uma tranquilidade etérea. É como se a alma mais sinistra se manifestasse pela mais acentuada leveza.

As esculturas vão-nos contando histórias através de uma leveza e delicadeza desconcertantes se tivermos em conta a matéria pesada e primária de que são feitas - o ferro, e, em muitas peças, o seu tamanho imponente.
O ferro, um dos elementos mais abundantes do Universo, dando nome a um período da história, tem uma componente fortemente orgânica, do interior do núcleo terrestre, possuindo uma capacidade para se alterar de estado líquido a sólido e de sólido a líquido, assumindo transformações, que são o ADN das esculturas de Rui Chafes.
Esta componente fortemente tradicional e romântica, aliada às influências em termos formais do minimalismo e da arte conceptual, são trabalhadas de uma forma única e marcadamente autoral por Rui Chafes, de tal modo que quando vemos uma escultura sua, sabemos que estamos perante uma obra indiscutivelmente sua.

A antologia no CAM mostrou a dicotomia presente em toda a obra de Rui Chafes: o leve e o pesado, o dentro e o fora, o agarrado ao chão e o que se liberta deste suspendendo-se no ar, a vida e a morte, o sofrimento e a libertação.
As esculturas são matéria, são corpos pintados de negro; muitas delas têm como ponto de partida o corpo, sólido e material, evoluindo depois para formas misteriosas que se nos impõem ao olhar e nos atingem, não sendo possível jamais nos libertarmos delas.
Agarradas à terra, a flutuar no ar ou partindo das paredes, as esculturas de Rui Chafes são às vezes atravessadas pela luz, realçando ainda mais a característica fundamental do seu trabalho: transformar um material pesado e bruto como o ferro, em formas orgânicas de espantosa subtileza e espiritualidade.
Baseando-se no princípio da ilusão e da falsa leveza, as suas obras não deixam ninguém indiferente.

Na escultura Durante o Sono esse efeito de leveza e anti-gravidade é levado ao extremo. Nesta obra, é explorada a falsa leveza até ao limite de tal forma que quando começamos a olhar a peça ela nos parece um acto de magia, tal a impossibilidade do que vemos, transportando-nos a um nível não real.
Aos nossos olhos surge-nos uma manifestação do mundo para além do visível. Um lugar entre a consciência e o arrebatamento.
A esfera negra e pesada parece flutuar e apetece tocar-lhe pois temos a certeza de que vai iniciar um movimento e ficar a pairar aos nossos olhos. Dela caiem filamentos que tecnicamente a suportam, contactando com o chão que encontram, resistindo à nossa compreensão.

Durante o Sono, 2002
Ferro pintado




































Durante o Sono diz-nos que o que se passa enquanto dormimos é incompreensível não podendo ser submetido a qualquer justificação cognitiva. Durante o sono sonhamos e esta capacidade é infinita enquanto vivemos, é o nosso lado obscuro e inexplicável. 
A esfera negra representa esse mundo indecifrável e imenso em que mergulhamos quando dormimos. Dela saem suportes físicos do volume que se eleva; movimento e repouso - mais uma dicotomia - num enlace fatal e indissolúvel em que o tempo se suspende.
O equilíbrio é desconcertante pois a relação do peso da esfera com a fragilidade da gravidade invertida, é surpreendente.

A escultura Secreta Soberania (Quando te vejo o mundo à nossa volta deixa, por momentos, de existir) faz parte das peças marcadas pela influência medieval que figuram não nos cânones típicos de uma cultura urbana, mas sim em outros inspirados numa tradição de cavalaria que há muito tempo de extinguiu na Europa.

Secreta Soberania (Quando te vejo o mundo à nossa volta deixa, por momentos, de existir), 2002
Ferro pintado















Esta obra é um Corpo armadura sem cavaleiro dentro, melancolicamente suspensa no arvoredo, armadilhada num tempo passado.
A integração desta escultura no exterior é uma intervenção artificial, reforçada pela presença da natureza envolvente, diferenciando e enaltecendo a própria natureza. 
A peça está ao sabor do vento, do sol, dos pássaros. A materialidade do ferro associada ao ambiente natural provoca-nos estranheza e é extremamente poética.
Ao depararmo-nos com esta escultura, apetece andar à volta dela, espreitar por baixo, crescer mais um metro para entrarmos, nela qual pássaro em gaiola aberta.
Há aqui um peso marcado pela forma como a escultura é fechada e aberta ao mesmo tempo, é prisão e liberdade, sendo possível protegermo-nos dentro dela e regressarmos ao mundo exterior quando for altura.
As tiras de ferro cruzadas, são trespassadas pela luz, contrariando o interior sombrio sugerido pelo gradeamento da quadrícula. O aspecto bélico remete-nos para sons de batalhas, de espadas a serem desembainhadas, de cavalos a correr.

Gombrich diz, “Não existe realmente algo a que se chame Arte. Existem apenas artistas.”
Esta ideia remete-nos para a constatação de que os artistas produzem algo que nos provoca sentimentos e que através destes sentimentos definimos a arte; são eles que nos permitem emocionar, que nos permitem sentir.
Tal como diz Marcel Duchamp, é através do espectador que a obra do artista ganha contacto com o mundo e passa a existir como arte fazendo o espectador parte do acto criativo através das suas interpretações e pensamentos.
Rui Chafes também acredita que a obra de arte é feita sobretudo para o espectador e é complementada pelo olhar de quem a vê, que a obra de arte só existe quando é vista pelos outros.
Segundo as suas palavras, desde que tem consciência de si próprio que Rui Chafes se lembra de ser escultor, de desenhar. Não procurou o que faz, o que faz já nasceu com ele. E isso é perceptível quando estamos perante as suas esculturas.
Rui Chafes é um artista puro. As suas obras têm vida própria sendo o artista um meio para lhes dar existência, passando as obras a ocupar um lugar no mundo à parte do seu criador. Citando-o: “... só faço as esculturas, o resto é obedecer, obedecer a vozes superiores que me dizem o que fazer. Sou um mero artesão dessas vozes superiores, que me dizem para fazer formas que não entendo”.

As suas esculturas são um acontecimento no espaço, com uma presença tão marcante que, o que as envolve impõe-se amplo, vazio e silencioso.
A compreensão da natureza associada à capacidade do domínio da matéria, do espaço e da escala tornam a obra de Rui Chafes esmagadora na sua envolvência e singularidade. No seu trabalho reconhece-se o seu corpo e a sua alma que se reflectem numa obra forte, intensa, verdadeira e por tudo isto intemporal. 

Criar uma escultura é criar um objecto até aí inexistente e que vai ter que encontrar o seu lugar no mundo, independente de suportes ou referências; uma escultura é algo que nunca existiu e que passa a estar presente.
O desafio da gravidade latente e o domínio espacial de cada escultura de Rui Chafes é tão forte, que torna cada uma delas num acontecimento estético, fazendo desta exposição um dos acontecimentos artísticos do ano.


Bibliografia

CHAFES, Rui (2013), “Um Sopro (esculturas 1998-2002)”, Porto, Galeria Graça Brandão, 2003
 CHAFES, Rui (2012), “Entre o Céu e a Terra”, Lisboa, Documenta
 GOMBRICH, E. H. (2006), “A História da Arte”, Lisboa, Público
 CARLOS, Isabel (2014) Catálogo da Exposição “O Peso do Paraíso”, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014
 READ, Herbert (1968), “O Significado da Arte”, Lisboa, Editora Ulisseia
 Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão: “Roteiro da colecção”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004

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