Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou – o que é muito pior – por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras
Livros, Caetano Veloso
Estava há já algum tempo para visitar a exposição de Livros de Artista patente no átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, coisa que só fiz agora recentemente. Estava longe de saber que esta visita me levaria a uma pequena viagem, ainda que muito superficial - porque os muitos afazeres e o pouco tempo não se compadecem com explorações mais profundas - ao maravilhoso mundo do livro objecto ou, como é da gíria, do Livro de Artista. A visita à exposição per si, pela reduzida dimensão da amostra, serviu apenas como um pequeno aperitivo à exploração deste tema, contudo abriu todo um manancial de hipóteses exploratórias para futuros trabalhos de investigação e pesquisa nesta área da edição de autor.
Projecto LivrObjecto - Anatomia e Arquitectura
O projecto LivrObjecto, organizado por Inês Correia, consiste na apresentação de alguns trabalhos de artistas plásticos, designers gráficos e outros criativos, que abordam o tema livro enquanto objecto que proporciona uma experiência visual e táctil, dando maior ênfase à sua dimensão material. Este projecto tem tido várias vertentes expositivas e de acolhimento por parte de diversas entidades como a Biblioteca dos Olivais, a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, a Galeria Diferença, a Biblioteca de São Lázaro e da Fábrica do Braço de Prata. Ao longo de 8 meses, de Setembro de 2017 a Abril de 2018, houve e haverá lugar, nas diversas instituições de acolhimento, à realização de instalações, palestras, exposições, leituras, workshops e também algum cinema.
Para mais informações sobre este projecto, podem consultar a sua página em https://livrobjecto.wordpress.com.
Ora, foi precisamente a vertente de acolhimento deste projecto por parte da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian que visitei.
Livros de Artista da colecção da Biblioteca
de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian
Convidada a participar neste projecto, a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian organizou uma mostra de alguns exemplares bibliográficos da sua colecção de Livros de Artista que conta, desde a sua criação na década de 90, com mais de 500 exemplares no seu acervo.
No texto de apresentação desta exposição pode ler-se:
LivrObjecto - Anatomia e Arquitectura
O Livro de Artista, enquanto LivrObjecto, parte de um vocabulário conceptual que faz dele um item bibliográfico. Porém, pela sua conformação, ele torna-se um espaço habitado não só pelo artista, mas também pela sugestão física que este deixa para o leitor, permitindo-lhe fazer da leitura uma experiência visual e táctil, em que o conteúdo é o consubstancial à escolha de materiais e à sua forma.
O LivrObjecto - Anatomia e Arquitectura é um projecto exploratório que pretende evidenciar a experiência material do LIVRO enquanto objecto imaginado, projectado e realizado por artistas a partir de autoedições, publicações independentes, livros únicos, ou de reduzidas tiragens, e mesmo de livros já publicados, mas alterados pela sua visão criativa.
Inês Correia, 2017
Esta pequena mostra de Livros de Artista teve duas fases:
- A primeira decorreu entre 3 de Outubro a 13 de Novembro, onde esteve em exposição uma vitrine colectiva com os trabalhos de Isabel Baraona, Rafael Faria e Sara&André; David Gonçalves, Eduarda Rosa, Hélder Gorjão e Carla Rebelo; Bela Silva e Catarina Leitão. Esteve também exposto numa vitrine individual o trabalho de Irene Buarque (n. 1943) intitulado “Ventura e Desventura de uma Janela Objecto” (2017);
- A segunda fase decorre desde o dia 15 de Novembro e conta igualmente com uma vitrine colectiva onde estão expostos os trabalhos de Leonor Antunes; Rosário Rebelo de Andrade; Rui Horta Pereira; Catarina Alves Lopes; Cristina Filipe; Luíza Neto Jorge e Jorge Martins. Na vitrine individual, substituindo o trabalho de Irene Buarque, está o trabalho “Livro de Viagem” (1984-1985), do escultor Carlos Nogueira (n. 1947).
Livro de viagem
Como já referi, a peça central desta segunda fase da exposição patente no átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian intitula-se Livro de Viagem - um livro-escultura de Carlos Nogueira, artista plástico nascido em Moçambique em 1947.
A sua formação passou pelos estudos de escultura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto e de pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa.
Além do trabalho escultórico que tem vindo a criar ao longo dos anos Carlos Nogueira tem sido o autor dos catálogos das suas exposições individuais e também do desenho gráfico de catálogos e monografias de algumas instituições como a Cinemateca Portuguesa, o Museu Nacional de Etnologia, o Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, o Museu da Cidade da Câmara Municipal de Lisboa e a editora Livros Horizonte.
Mais informações sobre o seu percurso e trabalho artístico podem ser consultadas em https://carlosnogueira.com.
A peça de Carlos Nogueira presente nesta pequena mostra de Livro de Artista
Livro de viagem / Carlos Nogueira
Autor: Nogueira, Carlos, 1947
Produção: [Lisboa] : C. Nogueira, (1984-85]
Descrição Física: 36,5x40,5x31,5cm
Livro de artista/escultura em madeira, ferro, tela e cartão; capa em placa de madeira pintada de branco com uma peça em feno com uma base de onde saem duas vezes seis espigões, que por sua vez, cada seis, define um plano e, em relação ao tamanho, uma linha; interior com duas folhas em tela pintadas a branco; tela e ripas de madeira pintadas em acrílico preto coladas nas guardas; contracapa em placa de madeira pintada de branco com uma peça de suporte em madeira pintada a preto.
A propósito desta peça, Inês Correia, a mentora do Projecto LivrObjecto - Anatomia e Arquitectura escreveu:
Este livro de viagem, enquanto momentum na organização da matéria, surge da convergência improvável de elementos naturalmente dispersos. A sua existência plena deriva da observação de sintonia entre linhas, planos e ângulos, face ao peso, contra-peso e vazios. Enriquecida pela perturbação, que o tempo lhe confere, essa sintonia mutante elege, suporta e veicula um registo mudo…é pois, no silêncio táctil, que nos oferece a leitura das sombras, tão familiar quanto a das paredes caiadas.
Este livro-objecto permite reconhecer a gramática escultórica do artista, e conquista lugar na filologia da sua vasta obra. Numa linguagem que lhe é própria, revela-se na ocupação do espaço, na criação dos volumes, na disposição das superfícies e na construção do imprevisto
Dentro do livro, deambulamos na multiface do bifólio branco e único, de um branco autêntico, que só o negro contíguo revela.
Fora do livro, continuamos nele por nos demorar o olhar, fixo sem dor, nos espigões de uma outrora escala de piano. Talvez seja um título dissonante - desses que nos inquietam os dedos e os medos e nos fazem procura na contra-capa uma outra dimensão, ou acolhimento. Encontramos sim o contraforte, austero e generoso como um patriarca, aposto na verticalidade do plano, a garantir a estabilidade hierárquica das partes e do todo.
O Projecto LivrObjecto - Anatomia e Arquitectura, reconhecendo o território exploratório desta obra, fica enriquecido pela experiência visual e diálogo conceptual, que a sua exposição temporária vem possibilitar.
O Livro de Viagem de Carlos Nogueira, com a singularidade de um livro aberto, e sobretudo um objecto em aberto… materialmente, em trânsito… imaterialmente, disponível.
Saí desta exposição com uma ideia diferente acerca daquilo que pode ser um livro objecto, principalmente pela impressão deixada pela obra do artista plástico Carlos Nogueira, com este seu livro que desperta, enquanto experiência, vários sentidos. Ainda que não tenha tido a possibilidade de tocar a obra em questão, o olhar passeou-se pelas texturas e jogos de planos de luz e sombra, despertando um imaginário arquitectónico que encontramos num Portugal antigo, desordenado e clandestino, nas suas construções de pedra, cal, ferro e madeira - uma viagem.
Com os dados que retirei na exposição, fiquei com curiosidade em saber se existiriam outros Livros de Artista de Carlos Nogueira, ou se este teria sido um trabalho único.
Paisagens das terras do monte e da pele
Foi no seu site que descobri várias outras peças realizadas na mesma época (entre 1984 e 1985) e que, no seu conjunto, deram origem à exposição “Paisagens das terras do monte e da pele” que teve lugar na Galeria Diferença, em Lisboa, entre 21 de Janeiro e 16 de Fevereiro de 1986.
À época foram expostas as seguintes obras:
- as portas dos rios te estão abertas;
- o livro do céu diurno;
- o livro do céu noturno;
- o livro do mar diurno;
- o livro do mar noturno;
- o livro de viagem;
- as nuvens são como as nuvens do céu, até ao fim das terras todas.
Terá sido, muito provavelmente, desta exposição que saiu o exemplar que está agora presente na mostra de Livros de Artista e que faz parte do acervo da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. No site do autor não encontrei mais nenhuma referência a este trabalho para além destas fotografias, da autoria de Paulo Costa, de alguns dos livros expostos e a informação de que existirá/existiu um catálogo da exposição com a seguinte referência: Paisagens das terras do monte e da pele, Lisboa, Galeria Diferença, 1986 (textos: Carlos M. Couto S. C., José Manuel Fernandes, José Teixeira). Foi a única informação que consegui encontrar.
Sem que tenha lido uma única palavra impressa, estes livros comunicaram essa experiência de viagem, iniciada com o primeiro livro visto na Gulbenkian, de uma forma multi-sensorial, através das formas e materiais escolhidos pelo autor, que continuou a transportar-me nessa memória que reconhece e evoca paisagens revisitadas em antigos passeios.
Todo este processo que se iniciou numa visita à exposição proposta pelo Projecto LivrObjecto - Anatomia e Arquitectura e que culminou no conhecimento destes trabalhos de Carlos Nogueira, confirmaram uma vez mais a evidência de que nem só de palavras vive um livro e que há outras formas que podemos recorrer para nos deixarmos transportar - basta estarmos preparados para a viagem que nos é proposta.
Bibliografia
- “LivrObjecto – Anatomia e Arquitectura”. LivrObjecto. [Em linha]. 2018. [Consult. a 03.01.2018]. Disponível em: https://livrobjecto.wordpress.com
- “LivrObjecto – Anatomia e Arquitectura”. Biblioteca de Arte Gulbenkian. [Em linha]. 2018. [Consult. a 03.01.2018]. Disponível em: https://gulbenkian.pt/biblioteca-arte/livrobjeto
- “Biografia de Carlos Nogueira”. Carlos Nogueira. [Em linha]. 2018. [Consult. a 03.01.2018]. Disponível em: https://carlosnogueira.com
- “Paisagens das terras do monte e da pele”. Carlos Nogueira. [Em linha]. 2018. [Consult. a 03.01.2018]. Disponível em: https://carlosnogueira.com/pt/trabalhos/paisagens-das-terras-do-monte-e-da-pele.html