Aren't you scared?
A Vida e a
Morte através do cinema ocidental
Il deserto rosso de Michelangelo Antonioni
Seria pretensioso dizer que o bom cinema está intrinsecamente ligado à
exploração do terrível, das verdades inconvenientes, dos aspectos aparentemente
mais básicos para a compreensão e descodificação da nossa existência, porém não
estou equivocada quando afirmo que para muitos, a nossa existência não passa da
repercussão de acções consequentes da sucessão contínua do sol no céu. Il deserto rosso de Michelangelo Antonioni
é prova da reflexão sobre o tema: a viagem deste ser estranho com emoções que
somos nós.
No entanto, penso que qualquer pessoa se consegue identificar com
Antonioni, talvez até por esse motivo ele tornou-se “O” cineasta; por conceber
obras que nos entram pelas entranhas, de uma ou de outra forma.
Antonioni mudou o curso do cinema e, consequentemente, a estrutura pela
qual percepcionamos o mundo e as coisas. O modo como trabalha o conteúdo
através da expressão da imagem poder-nos-ia levar por caminhos monótonos e
aborrecidos, o que, em linguagem corrente se traduziria simpaticamente por “uma
grande chatice, em que não se passa nada”. Tal não acontece: o tempo é exposto
ao máximo mas nós não damos pelo tempo “físico” passar.
O cinema, enquanto representação visual da realidade consegue
descodificar tabus culturais – é um veículo excepcional de comunicação: um bom
filme apropria-se da realidade para contar histórias: enquanto no decorrer da
vida quotidiana achamos que um objecto apenas vale pela função que lhe foi dada,
aquando a criação e pela denotação que lhe atribuímos, no cinema, esse objecto
tem um valor conotativo simbólico, encara variantes através da interpretação.
Estas múltiplas leituras de uma imagem ou objecto são conseguidas a partir do
reflexo das nossas emoções, no cinema, enquanto espectadores, participantes
passivos da história.
Antonioni não procurou a arte, procurou a vida; essa realidade que é tudo
menos virtual ou fictícia, que nos enforma pelo limite da existência. Os
aspectos formais vieram depois, como o próprio nome indica, para dar forma a
uma ideia, que nunca se viu como ideologia, mas como verdade subjectiva,
transformada em necessidade de expressão. Aos olhos do espectador, poderíamos
estar na presença de arte mas seria injusto delimitar os filmes apenas pelo
forma: eles contêm elementos muito mais fortes do que isso, como é o caso de
uma visão plana do mundo em relação ao tempo.
O estado de espírito que percorre o filme demonstra aversão ao processo
de sentir. É criada uma espécie de confusão, uma incoerência do ser humano, em
que simultaneamente é necessário ficar naquele tempo e espaço mas deseja
partir, para qualquer lugar, melhor do que onde se encontra.
A forma nunca poderia ser separada do conteúdo porque, para Antonioni, é
através do exterior que se chega ao interior. Por outras palavras, é através da
expressão que se chega às “almas”. Assim, ele abandona as regras formais do
cinema da época e propõe novas. Não se tratava de um desconhecimento da
técnica, mas, pelo contrário, era
devido a esse conhecimento exagerado que ele precisava de outra forma de se
exprimir. Assim, foram aparecendo os planos longos com longas distâncias
focais, criando um espaço plano, em alguns filmes (como é o caso, de Il deserto rosso).
Estávamos numa época de transição do preto e branco para a cor, nos
filmes de Antonioni e, para ele, essa mudança devia-se ao facto de a cor poder
ilustrar melhor o estado emocional de personagens e espaços, mas, para além
disso, o do espectador, que viveria mais intensamente o filme.
Ainda assim, também são muitos os temps
morts e os espaços vazios, onde são estendidos os momentos inexpressivos
das personagens e dos próprios espaços. Em conjunto com a não utilização de
música – Antonioni não a achava cinematográfica – e apenas o recurso a sons
naturais, que criavam, por vezes, um profundo silêncio, isto dilatava e
propagava o tempo, desenvolvendo uma alienação no espectador, semelhante à das
personagens.
Durante toda a sua vida, Antonioni nunca se preocupou com a política, os
problemas sociais ou outras quaisquer ideologias. O importante era o “espírito”
das personagens e a forma de transmitir essa alma que, segundo ele, se tornava
pobre caso ele desse ênfase aos outros assuntos que referi. Ele próprio dizia
que o seu cinema era um neo-realismo sem bicicleta pois queria retratar a
realidade, embora subjectiva, mas de uma forma mais profunda. Enquanto os
realizadores italianos andavam obcecados pelo real e pela imagem desse real,
Antonioni estava deslumbrado com a realidade invisível das coisas: o filme era
visto do exterior, através de pequenos gestos, interacções e organizações no
espaço, mas captava o interior das personagens e era só isso que interessava.
Assim, Antonioni tem como temas a fadiga e a incomunicabilidade entre os
corpos. A angústia e o cansaço da existência, com personagens alienadas no
espaço. Talvez não hajam sequer acções, as personagens limitam-se a viver. Os
conflitos da narrativa existem mas não são dadas respostas, apenas feitas
perguntas: o cinema de Antonioni é, simplesmente, um cinema de observação.
Mistura os tempos no espaços vazios: a inexpressão, os tempos mortos
(seja na imagem como na narrativa) onde se conhecem verdadeiramente as
personagens. É aí que elas sentem, é aí que o espectador sente com elas: na sua
deambulação nómada pelos seus mundos.
Mais uma vez, estas temáticas e estas deambulações remetem para o tempo.
Um tempo diferente entre os espaços e as personagens. Um tempo lento e
doloroso, que nos mostra uma sinceridade extrema. Para mim, esse cansaço do
corpo que é ele próprio um tempo, tem um tempo próprio: um tempo fora do seu
tempo, fora do seu mundo. Esse mundo não pára, está em direcção ao futuro, mas
o corpo é, em simultâneo, o passado, o presente e o futuro, nessa deambulação
sem limites. Está preso e cansado e movimenta-se por si só. A matéria que nos
encorpa fica gasta, morre, enquanto a alma que o sustem deambula sobre o tempo,
atravessa-o de uma forma singular.
Mas, independentemente da questão do tempo, os temas são muito ambíguos. Nas
palavras de Antonioni: São filmes “sobre nada.. com precisão”[1].
De outro modo, é a partir de imagens claras e acções simples que o realizador
fala de coisas profundas e confusas, que se manifestam de forma diferente de
espectador para espectador.
Isso acontece porque, como disse, os filmes não tentam dar respostas,
pois não é preciso explicar tudo, já que as coisas se limitam a existir. Isso
dá-nos uma grande margem de interpretação das coisas e essa interpretação
depende de variados factores, como é o caso das nossas características
pessoais, a nossa cultura e educação, a época em que vivemos ou o nosso estado
de espírito do momento: o contexto. Principalmente, posso dizer que o filme nos
mostra aquilo que queremos ver, ainda que involuntariamente.
E todos aqueles conjuntos de imagens cénicas de Antonioni concordam
comigo: os espaços vazios, os rostos pouco expressivos e anónimos, a vida que
continua sombria num tempo que parece distante (mais uma vez, tudo isto se
reflecte indirectamente, para mim, no tempo: um tempo demorado como demoradas
devem ser as despedidas, um tempo que reflecte a própria vida que é vivida,
aquela que à partida, tendo em conta a nossa cultura, tem um início e um fim). Em
Il deserto rosso, o autor utiliza o
ovo – com referência afrodisíaca – como símbolo da vida, do re-nascimento; o espaço onde a acção
acontece ajuda a descrever a contemplação do ovo – o escape à degradação do
mundo. As personagens estão confinadas a um espaço pequeno, apertado e
superlotado, onde experienciam um estado de dormência e alienação. Um espaço
caracterizado pela cor encarnada, que simboliza, especificamente, na minha
opinião, o desejo da carne, a tentação e o poder. É um lugar único num filme
onde é proeminente a neblina e o nevoeiro, o fumo e as grandes fábricas
cinzentas, sendo estas características simbolizadoras do mundo, da sociedade;
um mundo exterior a nós próprios, que um dia será a nossa morte: o que leva à
decadência da nossa alma.
Na cena de abertura Giuliana e o seu filho vagueiam pela zona industrial
de Ravenna onde o seu marido trabalha. As fábricas e os seus conteúdos são
filmados para os tornar precisos, poderosos e inesperadamente belos. Porém,
Antonioni, diz que “Em Il deserto rosso,
as máquinas, com o fascínio do poder, beleza, e sordidez, têm um enorme efeito,
e assumiram o lugar da paisagem
natural. (…) o homem deve moldar e restringir as máquinas à medida de si
próprio, e não tentar negar o progresso tecnológico.”[2]
Um filme “não deve impor o significado mas também não deve aboli-lo (...)
deixa o caminho aberto para o significado aberto e indeterminado”[3].
Poderíamos dizer que esta impossibilidade de delimitar os sentidos e definições
únicas advém do uso de metáforas e simbologias, por parte do autor do filme. É
normal que isso aconteça, mas, na minha opinião, somos nós, enquanto
espectadores, que as criamos, que nos associamos a determinada imagem ou ideia
e daí retiramos determinado sentido simbólico. Isso acontece devido a essa
ambiguidade na história e na imagem: as acções do filme são sempre inacabadas,
o realizador deixa margem para que este se continue a formar na nossa cabeça,
deixa espaço para que nós façamos, também, parte do filme, pois, segundo
Antonioni, quando os significados são impostos, o filme perde a sua essência:
ele deve vibrar e fazer vibrar, em vez de tentar explicar o inexplicável.
Mas aquilo a que nos cabe fazer parte não deve ser intelectual. Em vez
disso deve limitar-se aos sentidos. Basta que os significados estejam
inerentes, de uma forma inconsciente, para que essa passagem para o mundo da
tela se faça.
Antonioni pede-nos para não pensarmos, mas para apenas sentirmos. E é por
isso que eu penso que toda a gente se identifica com ele, mesmo tendo passado
mais de 50 anos do início da sua carreira: os filmes são tão especiais que
continuam a envolver-nos mesmo com as personagens, são tão únicos que não os
vemos simplesmente como forma, mas sim como um todo bem delineado mas que não
sabemos identificar.
Mas será que existe mesmo realidade ou apenas uma representação recriada,
de acordo com as diferentes interpretações que fazemos, das quais falei anteriormente?
Para mim, o filme reflecte também uma interpretação da vida, do que para nós é
naturalmente óbvio e viciosamente simbólico.
Ele é tão complexo que se torna impossível representá-lo com sistemas
simples. Tal como as interpretações que fazemos, a verdade é subjectiva, está
em constante mudança e tem a ver com as nossas características. E, neste caso,
com as do realizador: a forma como filma é sempre um espelho de si, da forma
como vê o mundo e como o quer mostrar. Aquela fábrica, o fumo e até o fogo
representam, de acordo com a minha perspectiva, a morte, a decadência, a
vontade de morrer e o “morrer por dentro”, em oposição a objectos, cores e
personagens que são utilizados como indicadores de esperança ao longo do filme:
momentos esporádicos de vida em todo aquele limbo. Esse mundo também é
subjectivo pois faz parte dessa realidade pessoal e única que só cada um de nós
conhece: o filme é, então, um misto de verdades parciais e subjectivas, numa
união entre realizador e espectador.
Antonioni era observador exímio que sabia sentir o que via, em vez de
apenas ver, por isso as suas personagens eram observadas do exterior mas
interpretadas a partir do interior. Talvez seja essa a razão de as percebermos
tão rapidamente, apesar da ambiguidade que transmitem: elas são verdadeiras,
mesmo numa realidade subjectiva. Os barcos, a noção de horizonte e o mar, no
meu entender, simbolizam, em relação à personagem principal, Giuliana, a
solução para acabar com todo o medo do estado que é estar vivo e consequentemente morrer: evadir daquele
mundo terrível.
O espírito destas personagens é visto pela sua expressão, sendo que cada
simples gesto consegue levar o filme a um patamar superior: o filme é feito não
de acções de personagens mas de expressões das mesmas.
Desta forma, os actores eram vistos como objecto nos filmes. Não de forma
depreciativa, pois o que Antonioni queria era que fossem espontâneos e não
metódicos, mas “o actor não precisa de compreender, só precisa de existir”[4].
A ideia é que sintam por eles mesmos, que estejam num estado de virgindade,
quando chegam ao plateau, em relação às personagens, que não pensem pelas
personagens, mas sintam por si próprios.
Ele tinha noção de que a verdade está sempre em constante mudança, de
acordo com os desejos e sentimentos do homem, por isso não tentava impor
significados: fazia-o através de imagens claras, todavia formando um conjunto
ambíguo. Todo o contexto/ambiente do filme, como os barcos e o nevoeiro, todas
as relações estabelecidas entre Giuliana e as outras personagens, e claro, o
impacto que essas têm nela, sugerem que a personagem principal está sob tortura
psicológica, implementada por ela mesma: ela sabe como fugir e deseja-o
loucamente, no entanto não consegue fazê-lo, a vida e os aspectos que estão
intimamente relacionados, são a sua âncora.
Antonioni era, também, frágil. Isto porque
enfrentou a vulnerabilidade, ou seja, como um verdadeiro artista, construía o
seu próprio caos de criação das obras, através de um espaço háptico[5]
- “Eu quero pintar o filme como um pintor pinta a tela; quero inventar as
relações de cor, não me quero limitar a fotografar apenas as cores naturais”[6],
num desejo de “escapar da dificuldade de um compromisso moral e estético, do
desejo obsessivo de se expressar.”[7]
Antonioni era, para além de artista, um artista do tempo. Um tempo que
reflecte a própria vida que é vivida. Um tempo certo, um tempo que tem razão de
ser.
Ainda assim, Antonioni não tentou ser artista: As obras que realizou não
foram premeditadas como arte, foram premeditadas como vidas. Alguns dizem que
são filmes em que nada acontece mas, mesmo assim, conseguem, ainda hoje,
cativar o público, ao contrário de filmes mais recentes que se enganaram na
conjugação do tempo com os outros elementos. Se calhar é tudo uma questão de
vida, se calhar é tudo uma questão de tempo...
Um cinema perfeito e apaixonante que nos consome. Mais ninguém será o
mesmo depois de olhar para a sua poesia: um poeta, um poeta das imagens,
dilatando e propagando o tempo em si.
“... fazer um filme, para mim, é viver.”
Michelangelo
Antonioni
[2]
por Antonioni, em Chatman,
Chatman/ Duncan, Paul, Michelangelo Antonioni a
filmografia completa, pág 89
[3]
por Antonioni, em Chatman,
Chatman/ Duncan, Paul, Michelangelo Antonioni a
filmografia completa, pág 15
[5]
conceitos de Gilles
Deleuze:
- o espaço háptico é um
“espaço óptico tactil”, ou seja, através do olhar o artista consegue sentir ao
extremo aquilo que vê
-
o caos artístico consiste numa simbiose do artista com a obra artística, antes
da sua realização física. É daí que advém a força da criação – a obra passa a
ser também corpo do artista.
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