sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Aren't you scared?


A Vida e a Morte através do cinema ocidental

Il deserto rosso de Michelangelo Antonioni


Seria pretensioso dizer que o bom cinema está intrinsecamente ligado à exploração do terrível, das verdades inconvenientes, dos aspectos aparentemente mais básicos para a compreensão e descodificação da nossa existência, porém não estou equivocada quando afirmo que para muitos, a nossa existência não passa da repercussão de acções consequentes da sucessão contínua do sol no céu. Il deserto rosso de Michelangelo Antonioni é prova da reflexão sobre o tema: a viagem deste ser estranho com emoções que somos nós.
No entanto, penso que qualquer pessoa se consegue identificar com Antonioni, talvez até por esse motivo ele tornou-se “O” cineasta; por conceber obras que nos entram pelas entranhas, de uma ou de outra forma.
Antonioni mudou o curso do cinema e, consequentemente, a estrutura pela qual percepcionamos o mundo e as coisas. O modo como trabalha o conteúdo através da expressão da imagem poder-nos-ia levar por caminhos monótonos e aborrecidos, o que, em linguagem corrente se traduziria simpaticamente por “uma grande chatice, em que não se passa nada”. Tal não acontece: o tempo é exposto ao máximo mas nós não damos pelo tempo “físico” passar.
O cinema, enquanto representação visual da realidade consegue descodificar tabus culturais – é um veículo excepcional de comunicação: um bom filme apropria-se da realidade para contar histórias: enquanto no decorrer da vida quotidiana achamos que um objecto apenas vale pela função que lhe foi dada, aquando a criação e pela denotação que lhe atribuímos, no cinema, esse objecto tem um valor conotativo simbólico, encara variantes através da interpretação. Estas múltiplas leituras de uma imagem ou objecto são conseguidas a partir do reflexo das nossas emoções, no cinema, enquanto espectadores, participantes passivos da história.

Antonioni não procurou a arte, procurou a vida; essa realidade que é tudo menos virtual ou fictícia, que nos enforma pelo limite da existência. Os aspectos formais vieram depois, como o próprio nome indica, para dar forma a uma ideia, que nunca se viu como ideologia, mas como verdade subjectiva, transformada em necessidade de expressão. Aos olhos do espectador, poderíamos estar na presença de arte mas seria injusto delimitar os filmes apenas pelo forma: eles contêm elementos muito mais fortes do que isso, como é o caso de uma visão plana do mundo em relação ao tempo.
O estado de espírito que percorre o filme demonstra aversão ao processo de sentir. É criada uma espécie de confusão, uma incoerência do ser humano, em que simultaneamente é necessário ficar naquele tempo e espaço mas deseja partir, para qualquer lugar, melhor do que onde se encontra.
A forma nunca poderia ser separada do conteúdo porque, para Antonioni, é através do exterior que se chega ao interior. Por outras palavras, é através da expressão que se chega às “almas”. Assim, ele abandona as regras formais do cinema da época e propõe novas. Não se tratava de um desconhecimento da técnica,  mas, pelo contrário, era devido a esse conhecimento exagerado que ele precisava de outra forma de se exprimir. Assim, foram aparecendo os planos longos com longas distâncias focais, criando um espaço plano, em alguns filmes (como é o caso, de Il deserto rosso).





Estávamos numa época de transição do preto e branco para a cor, nos filmes de Antonioni e, para ele, essa mudança devia-se ao facto de a cor poder ilustrar melhor o estado emocional de personagens e espaços, mas, para além disso, o do espectador, que viveria mais intensamente o filme.
Ainda assim, também são muitos os temps morts e os espaços vazios, onde são estendidos os momentos inexpressivos das personagens e dos próprios espaços. Em conjunto com a não utilização de música – Antonioni não a achava cinematográfica – e apenas o recurso a sons naturais, que criavam, por vezes, um profundo silêncio, isto dilatava e propagava o tempo, desenvolvendo uma alienação no espectador, semelhante à das personagens.
Durante toda a sua vida, Antonioni nunca se preocupou com a política, os problemas sociais ou outras quaisquer ideologias. O importante era o “espírito” das personagens e a forma de transmitir essa alma que, segundo ele, se tornava pobre caso ele desse ênfase aos outros assuntos que referi. Ele próprio dizia que o seu cinema era um neo-realismo sem bicicleta pois queria retratar a realidade, embora subjectiva, mas de uma forma mais profunda. Enquanto os realizadores italianos andavam obcecados pelo real e pela imagem desse real, Antonioni estava deslumbrado com a realidade invisível das coisas: o filme era visto do exterior, através de pequenos gestos, interacções e organizações no espaço, mas captava o interior das personagens e era só isso que interessava.
Assim, Antonioni tem como temas a fadiga e a incomunicabilidade entre os corpos. A angústia e o cansaço da existência, com personagens alienadas no espaço. Talvez não hajam sequer acções, as personagens limitam-se a viver. Os conflitos da narrativa existem mas não são dadas respostas, apenas feitas perguntas: o cinema de Antonioni é, simplesmente, um cinema de observação.
Mistura os tempos no espaços vazios: a inexpressão, os tempos mortos (seja na imagem como na narrativa) onde se conhecem verdadeiramente as personagens. É aí que elas sentem, é aí que o espectador sente com elas: na sua deambulação nómada pelos seus mundos.




Mais uma vez, estas temáticas e estas deambulações remetem para o tempo. Um tempo diferente entre os espaços e as personagens. Um tempo lento e doloroso, que nos mostra uma sinceridade extrema. Para mim, esse cansaço do corpo que é ele próprio um tempo, tem um tempo próprio: um tempo fora do seu tempo, fora do seu mundo. Esse mundo não pára, está em direcção ao futuro, mas o corpo é, em simultâneo, o passado, o presente e o futuro, nessa deambulação sem limites. Está preso e cansado e movimenta-se por si só. A matéria que nos encorpa fica gasta, morre, enquanto a alma que o sustem deambula sobre o tempo, atravessa-o de uma forma singular.
Mas, independentemente da questão do tempo, os temas são muito ambíguos. Nas palavras de Antonioni: São filmes “sobre nada.. com precisão”[1]. De outro modo, é a partir de imagens claras e acções simples que o realizador fala de coisas profundas e confusas, que se manifestam de forma diferente de espectador para espectador.
Isso acontece porque, como disse, os filmes não tentam dar respostas, pois não é preciso explicar tudo, já que as coisas se limitam a existir. Isso dá-nos uma grande margem de interpretação das coisas e essa interpretação depende de variados factores, como é o caso das nossas características pessoais, a nossa cultura e educação, a época em que vivemos ou o nosso estado de espírito do momento: o contexto. Principalmente, posso dizer que o filme nos mostra aquilo que queremos ver, ainda que involuntariamente.
E todos aqueles conjuntos de imagens cénicas de Antonioni concordam comigo: os espaços vazios, os rostos pouco expressivos e anónimos, a vida que continua sombria num tempo que parece distante (mais uma vez, tudo isto se reflecte indirectamente, para mim, no tempo: um tempo demorado como demoradas devem ser as despedidas, um tempo que reflecte a própria vida que é vivida, aquela que à partida, tendo em conta a nossa cultura, tem um início e um fim). Em Il deserto rosso, o autor utiliza o ovo – com referência afrodisíaca – como símbolo da vida, do re-nascimento; o espaço onde a acção acontece ajuda a descrever a contemplação do ovo – o escape à degradação do mundo. As personagens estão confinadas a um espaço pequeno, apertado e superlotado, onde experienciam um estado de dormência e alienação. Um espaço caracterizado pela cor encarnada, que simboliza, especificamente, na minha opinião, o desejo da carne, a tentação e o poder. É um lugar único num filme onde é proeminente a neblina e o nevoeiro, o fumo e as grandes fábricas cinzentas, sendo estas características simbolizadoras do mundo, da sociedade; um mundo exterior a nós próprios, que um dia será a nossa morte: o que leva à decadência da nossa alma.

Na cena de abertura Giuliana e o seu filho vagueiam pela zona industrial de Ravenna onde o seu marido trabalha. As fábricas e os seus conteúdos são filmados para os tornar precisos, poderosos e inesperadamente belos. Porém, Antonioni, diz que “Em Il deserto rosso, as máquinas, com o fascínio do poder, beleza, e sordidez, têm um enorme efeito, e assumiram o lugar  da paisagem natural. (…) o homem deve moldar e restringir as máquinas à medida de si próprio, e não tentar negar o progresso tecnológico.”[2]





Um filme “não deve impor o significado mas também não deve aboli-lo (...) deixa o caminho aberto para o significado aberto e indeterminado”[3]. Poderíamos dizer que esta impossibilidade de delimitar os sentidos e definições únicas advém do uso de metáforas e simbologias, por parte do autor do filme. É normal que isso aconteça, mas, na minha opinião, somos nós, enquanto espectadores, que as criamos, que nos associamos a determinada imagem ou ideia e daí retiramos determinado sentido simbólico. Isso acontece devido a essa ambiguidade na história e na imagem: as acções do filme são sempre inacabadas, o realizador deixa margem para que este se continue a formar na nossa cabeça, deixa espaço para que nós façamos, também, parte do filme, pois, segundo Antonioni, quando os significados são impostos, o filme perde a sua essência: ele deve vibrar e fazer vibrar, em vez de tentar explicar o inexplicável.
Mas aquilo a que nos cabe fazer parte não deve ser intelectual. Em vez disso deve limitar-se aos sentidos. Basta que os significados estejam inerentes, de uma forma inconsciente, para que essa passagem para o mundo da tela se faça.

Antonioni pede-nos para não pensarmos, mas para apenas sentirmos. E é por isso que eu penso que toda a gente se identifica com ele, mesmo tendo passado mais de 50 anos do início da sua carreira: os filmes são tão especiais que continuam a envolver-nos mesmo com as personagens, são tão únicos que não os vemos simplesmente como forma, mas sim como um todo bem delineado mas que não sabemos identificar.
Mas será que existe mesmo realidade ou apenas uma representação recriada, de acordo com as diferentes interpretações que fazemos, das quais falei anteriormente? Para mim, o filme reflecte também uma interpretação da vida, do que para nós é naturalmente óbvio e viciosamente simbólico.
Ele é tão complexo que se torna impossível representá-lo com sistemas simples. Tal como as interpretações que fazemos, a verdade é subjectiva, está em constante mudança e tem a ver com as nossas características. E, neste caso, com as do realizador: a forma como filma é sempre um espelho de si, da forma como vê o mundo e como o quer mostrar. Aquela fábrica, o fumo e até o fogo representam, de acordo com a minha perspectiva, a morte, a decadência, a vontade de morrer e o “morrer por dentro”, em oposição a objectos, cores e personagens que são utilizados como indicadores de esperança ao longo do filme: momentos esporádicos de vida em todo aquele limbo. Esse mundo também é subjectivo pois faz parte dessa realidade pessoal e única que só cada um de nós conhece: o filme é, então, um misto de verdades parciais e subjectivas, numa união entre realizador e espectador.

Antonioni era observador exímio que sabia sentir o que via, em vez de apenas ver, por isso as suas personagens eram observadas do exterior mas interpretadas a partir do interior. Talvez seja essa a razão de as percebermos tão rapidamente, apesar da ambiguidade que transmitem: elas são verdadeiras, mesmo numa realidade subjectiva. Os barcos, a noção de horizonte e o mar, no meu entender, simbolizam, em relação à personagem principal, Giuliana, a solução para acabar com todo o medo do estado que é estar vivo e  consequentemente morrer: evadir daquele mundo terrível.
O espírito destas personagens é visto pela sua expressão, sendo que cada simples gesto consegue levar o filme a um patamar superior: o filme é feito não de acções de personagens mas de expressões das mesmas.
Desta forma, os actores eram vistos como objecto nos filmes. Não de forma depreciativa, pois o que Antonioni queria era que fossem espontâneos e não metódicos, mas “o actor não precisa de compreender, só precisa de existir”[4]. A ideia é que sintam por eles mesmos, que estejam num estado de virgindade, quando chegam ao plateau, em relação às personagens, que não pensem pelas personagens, mas sintam por si próprios.




Ele tinha noção de que a verdade está sempre em constante mudança, de acordo com os desejos e sentimentos do homem, por isso não tentava impor significados: fazia-o através de imagens claras, todavia formando um conjunto ambíguo. Todo o contexto/ambiente do filme, como os barcos e o nevoeiro, todas as relações estabelecidas entre Giuliana e as outras personagens, e claro, o impacto que essas têm nela, sugerem que a personagem principal está sob tortura psicológica, implementada por ela mesma: ela sabe como fugir e deseja-o loucamente, no entanto não consegue fazê-lo, a vida e os aspectos que estão intimamente relacionados, são a sua âncora.
Antonioni era, também, frágil. Isto porque enfrentou a vulnerabilidade, ou seja, como um verdadeiro artista, construía o seu próprio caos de criação das obras, através de um espaço háptico[5] - “Eu quero pintar o filme como um pintor pinta a tela; quero inventar as relações de cor, não me quero limitar a fotografar apenas as cores naturais”[6], num desejo de “escapar da dificuldade de um compromisso moral e estético, do desejo obsessivo de se expressar.”[7]
Antonioni era, para além de artista, um artista do tempo. Um tempo que reflecte a própria vida que é vivida. Um tempo certo, um tempo que tem razão de ser.
Ainda assim, Antonioni não tentou ser artista: As obras que realizou não foram premeditadas como arte, foram premeditadas como vidas. Alguns dizem que são filmes em que nada acontece mas, mesmo assim, conseguem, ainda hoje, cativar o público, ao contrário de filmes mais recentes que se enganaram na conjugação do tempo com os outros elementos. Se calhar é tudo uma questão de vida, se calhar é tudo uma questão de tempo...
Um cinema perfeito e apaixonante que nos consome. Mais ninguém será o mesmo depois de olhar para a sua poesia: um poeta, um poeta das imagens, dilatando e propagando o tempo em si.






“... fazer um filme, para mim, é viver.”
Michelangelo Antonioni









[1] Brunette, Peter, The films of Michelangelo Antonioni, pág. 157, nota 21
[2] por Antonioni, em Chatman, Chatman/ Duncan, Paul, Michelangelo Antonioni a filmografia completa, pág 89
[3] por Antonioni, em Chatman, Chatman/ Duncan, Paul, Michelangelo Antonioni a filmografia completa, pág 15
[4] Antonioni, Michelangelo, Riflessioni sul attore, L’Europea Cinematografica
[5] conceitos de Gilles Deleuze:
- o espaço háptico é um “espaço óptico tactil”, ou seja, através do olhar o artista consegue sentir ao extremo aquilo que vê
- o caos artístico consiste numa simbiose do artista com a obra artística, antes da sua realização física. É daí que advém a força da criação – a obra passa a ser também corpo do artista.
[6] Strick, Philip, Antonioni, Londres, 1963, pág. 7
[7] folheto da RAI distribuído com o filme “Il mistero di Oberwald”, pág. 3

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