quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Ando a ver coisas



Análise da exposição “Fazer Sentido” – escrita em cadavre d'excuite




Curadoria de Emília Ferreira e Vanda Piteira
Artistas presentes: Amélie Ducommun, Ana Mandillo, Ana Rita António, Edgar Massul, Gabriela Albergaria, João Jacinto, João Leonardo, José Batista Marques, Pamela Golden, Pedro Pires e Susana Pires.
Exposição patente na Galeria da Casa da Cerca Salão Nobre e Galeria do Pátio 

de 11 de Março de 2017 a 28 de Janeiro de 2018




Descrição do espaço e dos objetos expostos

A Exposição encontra-se na outra margem do rio Tejo, no topo da Casa da Cerca. Este espaço existe como um centro cultural de referência dentro do centro velho de Almada há quase 30 anos Por si só, este espaço foi adaptado com cuidado artístico, num pequeno palácio ao estilo Barroco que se situa no topo de um morro, entre Cacilhas e o monumento do Cristo Rei em Almada. Não é um espaço desconhecido para mim pois já lá tinha passado muitas vezes sempre que procuro novas exposições.

Lá existem normalmente exposições anuais, A corrente tem título “Fazer Sentido”, onde são expostos um conjunto de peças para serem observadas pelos nossos 5 Sentidos.

Ao entrar no espaço deparamo-nos com cartaz com uma composição gráfica que faz lembrar uma radiografia acompanhada de diversos apontamentos. Este cartaz tem anunciando as varias exposições que irão decorrer durante 2017 e 2018. A principal neste momento chama-se “Fazer Sentido” com curadoria de Emília Ferreira e Vanda Piteira sobre os trabalhos de 11 artistas centrados nos sentidos ligados há perceção, emoção facultados pelo conhecimento dentro das memórias ou a imaginação.

Somos acolhidos na entrada por personagens feitos de ferro, um pintado e outro ferrugento, desenhados com quadrados soldados uns aos outros de forma a criar duas formas humanas em movimento eminente lento e pesado. São “manequins” de Pedro Pires, um artista interessado em fazer uma relação entre o produto conceptual e o poético transformando metal em desenho e desenho em metal. Os desenhos incluídos neste espaço, têm uma abordagem mais estética representando ações e situações relacionadas com o corpo humano. Concebidos através uma abordagem poética e elegante, usando uma ação bastante violenta para o papel. Feitos com uma rebarbadora sobre ferro, criando faíscas incandescentes, criando assim um doppelgänger da escultura, agora refletida no papel. Que o artista da relaciona nos títulos que dá às obras com o Ar, Caminho e Firme #2.



O itinerário de exposição muda desta área para outra com uma instalação com beatas de cigarros no chão desenhando uma forma humana e um texto decalcado na parede norte. Um ensaio de Emília Ferreira a curadora, sobe como atribuímos significado as coisas e de como fazer sentido dos sentidos.

A Esquerda junto a janela norte uma composição de Amélie Ducommum em tinta china sobre papel japonês que nos apela a refletir sobre a fluidez da água e os seus ritmos como impressões de nostalgia e do instantâneo.

De seguida somos convidados a subir para o 1 andar onde entramos na ala Este, agora pintada de verde escuro, com moveis almofadados em tons de verde colados nas paredes, e com estranhos objetos almofadados. A norte com sombras interessantes, objetos sentimentais construídos por Susana Pires são chamados de Abraçatórios, construídas para pessoas queridas, objetos que se estendem na consciência da falta deles podendo ser manipulados, abraçados e adorados. As outras obras estão nas paredes sul e norte as 3 horas. Acidentes desenhados por Gabriela Albergaria inspiradas em florestas depois de vendavais trovoadas e tempestades. A “Arvore” é um limoeiro refeito depois de um vendaval nos jardins da casa da cerca muito apreciados pela sua vista e cuidado com a jardinagem. Gabriela recorre a técnicas de enxertia para a sua reconstrução de arvores como referência da colonização feita e instalada. Juntamente um desenho sobre folhas de palma do brasil revelando a passagem do tempo sobre a cor.

A sul, contrastando, o design e artes plásticas de Ana Rita António o seu discurso é uma amalgama de praticas, onde e lhe junta o Próp-project. As obras apresentadas são quadros disfarçados de sofás pintados com funções aparentes mascarados de quadros e telas para nos causar confusão.

Posteriormente passamos para um ensaio de um professor da Faculdade de Belas Artes que expõem uma série de pinturas a pastel seco e cinza aguadas em papel, sem título, mas poetizadas por Odilon Redon. A poesia é apropriada pela visão experimentada na flor. 

No chão existe uma pequena instalação feita em cerâmica ou plástico e não tem informação nas paredes, mas é evidente a sua referência provocatória, para quem vive em Almada e sabe que os ratos da cidade são os pombos, pois não existe matéria que eles não consigam assimilar. Ao fundo da sala esta exposta uma mesa, mais alta, de José Batista Marques. A mesa contém 4 trofeus em forma de natureza morta moderna. Feitas entre 2015 e 2017, em grupos destintos. O primeiro de uma jarra morta e uma armadilha, para referenciar o inanimado versus a vida e a segunda, para referenciar a experiência estética e a fruição na arte.

A peça “Mon Chéri” é feita de pleonasmos ao facto da pintura não ser apenas a uma uni dimensão visual

Dentro de uma sala escura uma peça mecânica com luz gira à volta de um cilindro recortado em stencil com desenhos infantis dentro de um cubo. Feita por José Batista, projeta desenhos nas paredes. Criando conclusão aos sentidos, a escultura “the best Art curator, critic and Historian”, associa o sistema de funcionamento da Arte Contemporânea à pregunta:

o que é a arte e para onde vai?
Não encontrei 11 artistas mas o itinerário contempla uma abordagem geral sobre o que esta a acontecer dentro da Arte em Lisboa e em Almada. Um começo calmo cheio de incertezas

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Um Espelho, Mil Vontades

Do outro Lado do Espelho

Exposição / Museu Calouste Gulbenkian 

Curadoria de Maria Rosa Figueiredo com a colaboração de Leonor Nazaré 


O Espelho é um objecto bastante presente na história da humanidade já a alguns séculos. Este é um objecto banal, mas de certa forma intrigante, a uma primeira vista pode não parecer mais que uma fotografia com movimento, mas ele é muito mais para além disso. Não só imita a realidade como a pode distorcer, basta uma simples curvatura no espelho, que tudo o que está ali deixa de ser a realidade. Aqui vemos algumas abordagens, cinco para ser mais precisa, que podem ser feitas a partir deste objecto. Os artistas destas obras, dão-nos a conhecer várias perspectivas, ideias, mensagens e fantasias, provando ao espectador que existe um mundo para além daquilo que vemos. 
Do outro lado do espelho, trata-se de um confronto com a nossa ideia inocente do que é na realidade este objecto e o que ele tem representado ao longo dos séculos. Ao entrarmos nesta exposição percebemos logo o seu intuito: dar-nos a conhecer os diferentes conceitos, mas também nos desafiar enquanto espectadores, pois vamo-nos confrontando com o nosso reflexo ao longo da exposição, o que a torna um tanto ou quanto intrigante.

A primeira abordagem é o espelho na sua essência, cumprindo nada mais do que o seu propósito, “Quem sou eu?”: O Espelho Identitário - aquele que faz uma representação exímia da realidade, o espelho é tratado como algo que nos ajuda a ter uma imagem real sobre nós e a construir a imagem do que sou eu perante os outros. 
Neste primeiro espaço existem várias obras que nos mostram a simplicidade daquilo que é o nosso reflexo, e que nos fazem aproximar das obras, não só para nos vermos reflectidos mas também para nos aproximarmos do próprio sentido da obra. Aqui relato uma destas primeiras obras, um filme que Victor Kossakovsky fez sobre a primeira vez que o seu filho, de aproximadamente dois anos, se olhou no espelho. Um evento muito natural e banal no quotidiano de qualquer pessoa, mas não ali, ali foi um momento em que ele não entendeu logo, mas certamente se intrigou pois não tinha nunca visto quem era. De inicio estranhou achou ser outro alguém, tentou passar para o outro lado, bateu, mas logo se apercebeu de que não era uma outra criança que ali estava, notou que fazia tudo igual, até que ao fim de várias experiências com gestos e objectos se apercebe de que aquele corpo que ali está é o seu e aproxima-se, sorri, encosta a cara, dá beijinhos. É Interessante ver e perceber que ali, naquele momento, uma nova realidade surgiu para aquela criança, a partir dali esta ganha consciência do “eu”.

Svyato, Rússia, 2005- Filme, cor 33'06''
de Victor Kossakovsky

Passamos para uma outra visão, O Espelho Alegórico - este representa as ideias e vontades daquele que se olha ao espelho, a vaidade, a luxuria, o tempo, a beleza, a humildade, a tentação, etc. 
A representação destas ideias faz-se através da personificação. Aqui é a altura em que nos apercebemos de que, apesar do espaço reflectir a realidade como a vemos, na verdade só vemos aquilo que queremos e a cima de tudo, como queremos. É possível observar-se isso na imagem a baixo, temos uma mulher de uma classe social alta, muito arranjada, percebe-se pela maneira como está vestida e pelos objectos que a circundam. Esta está a apontar para o espelho com o seu reflexo, como se estivesse a fazer um convite, mas não um convite inocente, pois esse percebemos logo com o nome da obra ‘Alegoria do Amor Profano’, esta tem o peito bastante exposto enquanto aponta para o seu reflexo, esse convite surge quase como uma possível partilha do prazer que ela sente, face á sua juventude e beleza.

Rapariga com Espelho - Alegoria do Amor Profano, 1627
Óleo sobre tela
de Paulus Moreelse
E ja no outro lado da parede podemos observar uma terceira abordagem Mulheres ao Espelho: A Projecção do Desejo - um retrato unicamente feito sobre o sexo feminino, o efeito sedutor que o espelho tem sobre este e as vontades que nos transmite. 

Apercebemo-nos que não é uma coisa dos dias de hoje, este efeito, já vem desde que o reflexo existe, seja este em forma de espelho ou não. A mulher tem gosto por se observar mas não só por uma questão de necessidade. Eu sendo mulher, consigo partilhar dessa sedução, somos atraídas e levadas para um imaginário em que ficamos ali, nós e o espelho num cenário que só é visto por nós e consequentemente nos arranjamos, com o objectivo de traduzir aquela mulher que idealizámos na nossa cabeça. Como referi anteriormente, ao longo da exposição, vamos sendo confrontado com vários espelhos postos propositadamente para que nos vejamos. É interessante esta possibilidade de podermos experienciar e de certa forma confirmar que, as obras que estamos a observar e o que elas transmitem, é exatamente aquilo que sentimos ao olharmos no espelho - e aqui identifico-me, de todas as vezes que tive um espelho perto, olhei. Olhei só porque sim, porque me senti atraída, porque precisava de me ver, perceber se me estavam a ver como eu queria ser vista. Fez exatamente aquilo que relata em todas as obras expostas nesta secção. 
Aqui gostava de salientar uma obra, um video que é uma pequena compilação de filmagens de mulheres a verem-se ao espelho e as suas reacções, mulheres de todos os tipos, de várias épocas e idades, é interessante, que todas se fixam, seja porque razão for. Acredito que para qualquer mulher que vá a esta exposição, não precisa de ler ou ver uma obra para entender este ‘capitulo’, basta darem-nos um espelho para a mão, que logo percebemos o que significa. 
Mirrors of Bergman - Filme, 3'21
de Kogonada

Neste quarta parte passamos para o imaginário do artista, pode-se mesmo dizer, uma fantasia, esta denominada de Espelhos que Revelam e Espelhos que Mentem. 
Aqui os artistas mostram o espelho como uma espécie de mensageiro, como referi no início. Os espelhos podem transmitir muita coisa, uma mensagem, uma ideia ou até uma fantasia. É mais do que uma a obra que faz referência à Alice no País das Maravilhas, como aquela ideia de mistério, ingenuidade, de alguém que passou para o outro lado e encontra maravilhas, mas que nós aqui, deste lado, só imaginamos, não vemos. Na obra a baixo representada, vê-se uma mão a sair de um espelho - esta é a mão de Alice, ela está quase como a fazer um convite para a agarrarmos e irmos para o outro mundo. Nesta obra simples, o artista proporciona-nos um momento de fantasia, mas dá-nos total liberdade de a criarmos como queremos.
La Main d'Alice, 1983 - Óleo sobre tela
de Eduardo Luiz

Por último temos o olhar masculino - O Espelho Masculino: Autorretratos e Outras Experiências. Nesta abordagem podemos ver uma realidade bem diferente da das mulheres, aqui as obras reflectem experiências, enquanto as mulheres viam o que queriam ser, aqui os homens vêm e procuram saber o que podem fazer. 
Temos várias abordagens, desde brincadeiras com os espelhos côncavos e convexos misturados com autorretratos, a misturas de reflexos até a brincadeira com formas. Na obra a baixo representada, vemos um pequeno espelho pousado numa mão, espelho este que reflete o rosto do artista. Esta desproporção dá-nos uma dualidade de pensamento, por um lado dá a entender de que somos frágeis, quase como que a ideia da nossa existência pudesse ser esmagada ou acabada por aquela mão em segundos, por outro a ideia de que se ali estivermos aquela mão nos irá guardar, recordar, pois de repente, tudo o que somos ficou reduzido aquele pequeno tamanho. Aqui nenhum espelho serve ou serviu para satisfazer vaidades mas para experiências vários pontos de vista e abordagens.
Mão com Espelho, série O Ofício de Viver, 2010
Fotografia, impressão a jacto de tinta
de Daniel Blaufuks

É um desafio interessante a exposição, o facto de não se tratar de um autor único da-lhe um certo encanto, ela incorpora 69 obras de arte, desde o século XII até aos dias de hoje e mesmo assim conseguimos entender a linha de seguimento entre os autores mesmo que sejam obras de alturas e técnicas muito variadas.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

                Exposição
Rui Chafes “O Peso do Paraíso”
Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão  






Rui Chafes nasceu em Lisboa em 1966 e formou-se em Escultura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa em 1989, tendo aprendido com António Trindade, Professor de metais extraordinário, segundo palavras suas, que lhe ensinou tudo o que sabia.
Depois das Belas-Artes foi para Dusseldorf - a cultura alemã sempre o interessou profundamente - onde frequentou a Kunstakademie, sob a orientação do artista alemão Gerhard Merz.
Num percurso consolidado, expõe regularmente desde os anos 80, quando foi considerado pela Revista K, um génio. 
As suas primeiras exposições individuais na Galeria Leo, 1986 e 1987, e no espaço Poligrupo Renascença, em 1988, definem um período inicial marcado pela criação de instalações nas quais usava materiais variados, como troncos, canas, fitas de platex, ripas de madeira e plástico, que viria a abandonar depois de uma breve passagem pela pedra, a favor do uso exclusivo do ferro pintado de preto, convocando para o seu trabalho a experiência física da sua configuração, alquímica e industrial.

O universo da sua obra transporta-nos para o mundo nostálgico e exacerbado do romantismo alemão, reflectido nos títulos que escolhe, com palavras como "sonho", "morte", "manhã", "ferida", entre outras, materializando estas palavras no seu material de eleição, o ferro.

O "lugar" da escultura é também uma constante na obra de Rui Chafes, realizando esculturas de chão, de tecto, penduradas nas paredes, ocupando lugares inesperados, ao ar livre e, por vezes, empoleiradas em árvores com os pássaros.

A partir da escultura e do desenho - faceta da sua produção artística que Rui Chafes mantém com regularidade diária desde o início do seu percurso - podemos ver como conceitos como o informe e às vezes o repulsivo, surgem na sua obra numa tentativa permanente da conquista da desmaterialização tal como concebida pela arquitectura gótica.

Na sua autobiografia, escrita por ocasião do Ciclo “100 Lições” no Centenário da Universidade de Lisboa, em 2011, Rui Chafes coloca-se a si próprio, qual “Orlando” de Virgínia Wolf, a percorrer séculos de história de arte, vivendo em diferentes épocas e países, trabalhando com vários Mestres, numa épica metáfora para dar conta da sua aprendizagem, da sua evolução e finalmente do encontro de si próprio como artista.
E nós acreditamos.


A exposição no Centro de Arte Moderna (CAM) José de Azeredo Perdigão construiu um percurso, em que o artista criou um universo singular em permanente inquietação, com mais de 100 obras, algumas inéditas ou nunca expostas em Portugal, depois de acontecimentos semelhantes em Itália e no Brasil.
Figura de destaque do movimento de retorno à escultura que se verificou nos finais do século XX, Rui Chafes é um dos mais importantes artistas da sua geração e, ocupou com esta exposição antológica, tanto o interior como o exterior do Centro de Arte Moderna, ao prolongar-se pelo jardim.

Was soll ich tun wenn du nicht da bist, 2004
Ferro pintado























No percurso pela nave central do CAM atinge-nos o assombro mas também uma sensação de recolhimento e intimidade. O trabalho de Rui Chafes é solene e carregado de sentimentos nem sempre luminosos, quando mergulhados na obscuridade.
O peso a fluir, o movimento suspenso, o tempo parado são contradições que nos incomodam, inquietam mas ao mesmo tempo nos fazem sentir uma tranquilidade etérea. É como se a alma mais sinistra se manifestasse pela mais acentuada leveza.

As esculturas vão-nos contando histórias através de uma leveza e delicadeza desconcertantes se tivermos em conta a matéria pesada e primária de que são feitas - o ferro, e, em muitas peças, o seu tamanho imponente.
O ferro, um dos elementos mais abundantes do Universo, dando nome a um período da história, tem uma componente fortemente orgânica, do interior do núcleo terrestre, possuindo uma capacidade para se alterar de estado líquido a sólido e de sólido a líquido, assumindo transformações, que são o ADN das esculturas de Rui Chafes.
Esta componente fortemente tradicional e romântica, aliada às influências em termos formais do minimalismo e da arte conceptual, são trabalhadas de uma forma única e marcadamente autoral por Rui Chafes, de tal modo que quando vemos uma escultura sua, sabemos que estamos perante uma obra indiscutivelmente sua.

A antologia no CAM mostrou a dicotomia presente em toda a obra de Rui Chafes: o leve e o pesado, o dentro e o fora, o agarrado ao chão e o que se liberta deste suspendendo-se no ar, a vida e a morte, o sofrimento e a libertação.
As esculturas são matéria, são corpos pintados de negro; muitas delas têm como ponto de partida o corpo, sólido e material, evoluindo depois para formas misteriosas que se nos impõem ao olhar e nos atingem, não sendo possível jamais nos libertarmos delas.
Agarradas à terra, a flutuar no ar ou partindo das paredes, as esculturas de Rui Chafes são às vezes atravessadas pela luz, realçando ainda mais a característica fundamental do seu trabalho: transformar um material pesado e bruto como o ferro, em formas orgânicas de espantosa subtileza e espiritualidade.
Baseando-se no princípio da ilusão e da falsa leveza, as suas obras não deixam ninguém indiferente.

Na escultura Durante o Sono esse efeito de leveza e anti-gravidade é levado ao extremo. Nesta obra, é explorada a falsa leveza até ao limite de tal forma que quando começamos a olhar a peça ela nos parece um acto de magia, tal a impossibilidade do que vemos, transportando-nos a um nível não real.
Aos nossos olhos surge-nos uma manifestação do mundo para além do visível. Um lugar entre a consciência e o arrebatamento.
A esfera negra e pesada parece flutuar e apetece tocar-lhe pois temos a certeza de que vai iniciar um movimento e ficar a pairar aos nossos olhos. Dela caiem filamentos que tecnicamente a suportam, contactando com o chão que encontram, resistindo à nossa compreensão.

Durante o Sono, 2002
Ferro pintado




































Durante o Sono diz-nos que o que se passa enquanto dormimos é incompreensível não podendo ser submetido a qualquer justificação cognitiva. Durante o sono sonhamos e esta capacidade é infinita enquanto vivemos, é o nosso lado obscuro e inexplicável. 
A esfera negra representa esse mundo indecifrável e imenso em que mergulhamos quando dormimos. Dela saem suportes físicos do volume que se eleva; movimento e repouso - mais uma dicotomia - num enlace fatal e indissolúvel em que o tempo se suspende.
O equilíbrio é desconcertante pois a relação do peso da esfera com a fragilidade da gravidade invertida, é surpreendente.

A escultura Secreta Soberania (Quando te vejo o mundo à nossa volta deixa, por momentos, de existir) faz parte das peças marcadas pela influência medieval que figuram não nos cânones típicos de uma cultura urbana, mas sim em outros inspirados numa tradição de cavalaria que há muito tempo de extinguiu na Europa.

Secreta Soberania (Quando te vejo o mundo à nossa volta deixa, por momentos, de existir), 2002
Ferro pintado















Esta obra é um Corpo armadura sem cavaleiro dentro, melancolicamente suspensa no arvoredo, armadilhada num tempo passado.
A integração desta escultura no exterior é uma intervenção artificial, reforçada pela presença da natureza envolvente, diferenciando e enaltecendo a própria natureza. 
A peça está ao sabor do vento, do sol, dos pássaros. A materialidade do ferro associada ao ambiente natural provoca-nos estranheza e é extremamente poética.
Ao depararmo-nos com esta escultura, apetece andar à volta dela, espreitar por baixo, crescer mais um metro para entrarmos, nela qual pássaro em gaiola aberta.
Há aqui um peso marcado pela forma como a escultura é fechada e aberta ao mesmo tempo, é prisão e liberdade, sendo possível protegermo-nos dentro dela e regressarmos ao mundo exterior quando for altura.
As tiras de ferro cruzadas, são trespassadas pela luz, contrariando o interior sombrio sugerido pelo gradeamento da quadrícula. O aspecto bélico remete-nos para sons de batalhas, de espadas a serem desembainhadas, de cavalos a correr.

Gombrich diz, “Não existe realmente algo a que se chame Arte. Existem apenas artistas.”
Esta ideia remete-nos para a constatação de que os artistas produzem algo que nos provoca sentimentos e que através destes sentimentos definimos a arte; são eles que nos permitem emocionar, que nos permitem sentir.
Tal como diz Marcel Duchamp, é através do espectador que a obra do artista ganha contacto com o mundo e passa a existir como arte fazendo o espectador parte do acto criativo através das suas interpretações e pensamentos.
Rui Chafes também acredita que a obra de arte é feita sobretudo para o espectador e é complementada pelo olhar de quem a vê, que a obra de arte só existe quando é vista pelos outros.
Segundo as suas palavras, desde que tem consciência de si próprio que Rui Chafes se lembra de ser escultor, de desenhar. Não procurou o que faz, o que faz já nasceu com ele. E isso é perceptível quando estamos perante as suas esculturas.
Rui Chafes é um artista puro. As suas obras têm vida própria sendo o artista um meio para lhes dar existência, passando as obras a ocupar um lugar no mundo à parte do seu criador. Citando-o: “... só faço as esculturas, o resto é obedecer, obedecer a vozes superiores que me dizem o que fazer. Sou um mero artesão dessas vozes superiores, que me dizem para fazer formas que não entendo”.

As suas esculturas são um acontecimento no espaço, com uma presença tão marcante que, o que as envolve impõe-se amplo, vazio e silencioso.
A compreensão da natureza associada à capacidade do domínio da matéria, do espaço e da escala tornam a obra de Rui Chafes esmagadora na sua envolvência e singularidade. No seu trabalho reconhece-se o seu corpo e a sua alma que se reflectem numa obra forte, intensa, verdadeira e por tudo isto intemporal. 

Criar uma escultura é criar um objecto até aí inexistente e que vai ter que encontrar o seu lugar no mundo, independente de suportes ou referências; uma escultura é algo que nunca existiu e que passa a estar presente.
O desafio da gravidade latente e o domínio espacial de cada escultura de Rui Chafes é tão forte, que torna cada uma delas num acontecimento estético, fazendo desta exposição um dos acontecimentos artísticos do ano.


Bibliografia

CHAFES, Rui (2013), “Um Sopro (esculturas 1998-2002)”, Porto, Galeria Graça Brandão, 2003
 CHAFES, Rui (2012), “Entre o Céu e a Terra”, Lisboa, Documenta
 GOMBRICH, E. H. (2006), “A História da Arte”, Lisboa, Público
 CARLOS, Isabel (2014) Catálogo da Exposição “O Peso do Paraíso”, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014
 READ, Herbert (1968), “O Significado da Arte”, Lisboa, Editora Ulisseia
 Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão: “Roteiro da colecção”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004