O Livro Ilegível e os Pré-livros

As experiências editoriais de Bruno Munari
ou o livro enquanto objecto sensorial

 

“É preciso, enquanto se está a tempo, habituar o indivíduo a pensar, imaginar, a fantasiar, a ser criativo.” - Bruno Munari

Pensar o livro enquanto uma experiência sensorial, arrancando o leitor do seu habitual estado de receptor passivo da mensagem, foi a proposta que Bruno Munari deu início com alguns dos seus projectos editoriais, tanto nos seus trabalhos para adultos - os Livros Ilegíveis, quanto as obras que idealizou para as crianças - os Pré-Livros.
Esta foi a grande revolução que Munari trouxe para o mundo da edição do livro: encarar o livro enquanto veículo capaz de comunicar por outra forma para além do texto.
Bruno Munari foi um designer e artista (ou um artista e designer) italiano, nascido em 1907 na cidade de Milão, tendo falecido, na mesma cidade, em 1998, aos 91 anos de idade. 
O seu contributo foi enorme em diversas áreas do saber, do pensar e do fazer artístico, tanto no campo das artes visuais (pintura, escultura, design e cinema), como também na literatura e na poesia.
Para muitos, o seu trabalho tornou-se uma referência na área editorial, tendo havido quem o considerasse como um dos designers mais inspiradores de todos os tempos - Picasso chega a referir-se a Munari como “o novo Leonardo”.
Ainda que tenha iniciado a sua actividade profissional enquanto designer gráfico no início da década de 30, do século passado, foi só após o fim da segunda guerra mundial que Munari começa a projectar e a produzir inovações radicais na área do design gráfico, da tipografia e da edição de objectos-livro - é nesta fase que surgem os seus primeiros “Livros Ilegíveis”. 
Influenciado pelo nascimento do seu filho Alberto, é também nesta altura que começa a criar os seus primeiros livros infantis que desafiam o conceito tradicional de livro - razão pela qual muitos dos seus projectos foram recusados pelas editoras da época. 
Contudo é somente em 1981 que Munari apresenta formalmente estes conceitos - livro ilegível e o de pré-livro - ao publicar o livro “Das Coisas Nascem Coisas”.

Os Livros Ilegíveis

“Normalmente quando se pensa em livros pensa-se em textos (…) que se imprimem sobre as páginas. Pouco interesse se tem pelo papel, pela encadernação do livro, pela cor da tinta, por todos aqueles elementos com que se realiza o livro como objecto. Pouca importância se dá aos caracteres tipográficos e muito menos aos espaços brancos, às margens, à numeração das páginas, e a tudo o resto. O objectivo desta experimentação foi ver se é possível usar o material com que se faz um livro (excluindo o texto) como linguagem visual. O problema, portanto, é: pode-se comunicar, visual e tacitamente, apenas com os meios editoriais de produção de um livro? Ou: o livro como objecto, independentemente das palavras impressas, pode comunicar alguma coisa? O quê?” - Bruno Munari

Munari projecta a primeira série de livros ilegíveis em 1949, numa proposta que abandona por completo toda a comunicação textual, favorecendo uma função maioritariamente estética, formal, física e sensorial do livro. 
Essa exploração acontece recorrendo às diferentes texturas, espessuras e formatos das páginas. O livro apresenta-se já não num binómio “papel-que-serve-de-suporte-ao-texto”, mas antes como um objecto onde a mensagem passa através do formato, da cor e dos diferentes cortes das páginas, e também pela forma como esses cortes se sucedem. 
Os elementos que tradicionalmente compõem um livro são deixados de parte e a leitura assemelha-se à execução de uma melodia, cujos ritmos de leitura diferentes criam diversos jogos ao longo das páginas.
Os primeiros exemplares destes livros, feitos à mão, foram inicialmente expostos na livraria SALTO, em Milão em 1950. Posteriormente, o MoMa, Nova Iorque, produziu uma edição de mil exemplares aquando da exposição Two Graphic Designers, em 1967.
Munari criou vários destes livros ao longo da sua vida, sendo sempre recorrente a experimentação dos materiais e os jogos visuais. 
O livro na imagem superior, intitulado Libro Illeggibile “MN1”, foi projectado por Munari em 1984. 

Os Pré-livros

“Sabe-se que as pessoas de idade têm uma enorme dificuldade em modificar o seu pensamento, justamente porque aquilo que se aprende nos primeiros anos de vida permanece como regra fixa para sempre e, ter de a mudar, para muitos, é como perder a segurança para aventurar-se numa situação que não se conhece. A solução deste problema, de aumentar o conhecimento e de formar pessoas com mentalidade mais elástica e menos repetitiva, está em nos ocuparmos com os indivíduos enquanto se formam. Nos primeiros anos de vida, enquanto, como ensina Piaget, se forma a inteligência. Sabemos também que nos primeiros anos de vida as crianças conhecem o ambiente que as rodeia por meio de todos os seus receptores sensoriais (…).” - Bruno Munari

Com base neste pressuposto Bruno Munari cria este projecto que é composto por 12 pequenos livros. Cada um deles tem diferentes propostas de exercícios onde Munari convida as crianças a explorarem outras sensações com todos os seus sentidos: o tacto, o olfacto, a audição, para além daquilo que habitualmente é explorado apenas com o estímulo visual - o que ocorria com a maioria dos livros infantis na época.
Os livros foram projectados todos no mesmo tamanho, com o único título “LIVRO”, impresso de forma simétrica independentemente do lado por onde a criança iniciasse a sua leitura. Por essa razão não existia uma história linear, uma narrativa, para que também fosse estimulado o pensamento e raciocínio dos pequenos “leitores”. Desta forma a mensagem era sempre veiculada e o conteúdo não perdia nunca a sua lógica.
Para aumentar o estímulo sensorial Munari recorreu a vários materiais como tecido, cartão, couro, madeira e plástico, assim como diferentes tipos de encadernação.
Foram colocados vários protótipos à disposição das crianças em idade pré-escolar, a fim de se testarem as suas reacções. Com o resultado desses testes de usabilidade, após algumas alterações e ajustamentos, os modelos finais começaram a ser produzidos pela Danese, em Milão, no princípio dos anos 80.
A proposta de Munari, com estes pré-livros, foi no sentido de produzir vários objectos sensoriais que, aumentando a amplitude dos sentidos passíveis de serem explorados pelas crianças, as estimulasse a ter uma abordagem criativa e experimental com o objecto livro e com o processo de leitura. 
Era intenção de Munari que, com esta desconstrução do objecto livro, as crianças criassem uma relação mais positiva com os hábitos de leitura numa fase posterior da sua vida, quando fossem mais velhos, graças a esta forma diferente de experimentação do livro durante a sua infância.

[Nota: Algumas imagens destes 12 livros podem ser consultadas com maior detalhe aqui.]

Nos dias de hoje, passados mais de 80 anos desde as suas primeiras investidas neste campo, o seu trabalho continua, tão actual quanto pertinente, razão pela qual os seus livros ainda se mantêm com uma grande aceitação por parte do público, continuando, a maior parte deles, a ser reeditados. 


Bibliografia

• Munari, Bruno (1982) “Das Coisas Nascem Coisas”, Lisboa, Edições 70
• Brandão, Lucas - "Bruno Munari, um dos principais nomes na teoria e prática do design”. Comunidade Cultura e Arte. [Em linha]. 2017. [Consult. a 10.12.2017]. Disponível em: https://www.comunidadeculturaearte.com/bruno-munari-um-dos-principais-nomes-na-teoria-e-pratica-do-design/
• Ferreira, Carolina - "Munari: livro ilegível e pré-livro”. Medium. [Em linha]. 2017. [Consult. a 10.12.2017]. Disponível em: https://medium.com/@carolinaferreira/munari-livro-ileg%C3%ADvel-e-pr%C3%A9-livro-3c65b53a54e1
• "Bruno Munari”. Wikipedia. [Em linha]. 2017. [Consult. a 10.12.2017]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bruno_Munari
• Dowling, Jon - "Bruno Munari “. Counter-Print. [Em linha]. 2017. [Consult. a 10.12.2017]. Disponível em: https://www.counter-print.co.uk/blogs/news/bruno-munari
• "Libro illeggibile 'MN 1’". Counter-Print. [Em linha]. 2017. [Consult. a 10.12.2017]. Disponível em:https://www.counter-print.co.uk/products/libro-illeggibile-mn-1