Não será um pouco pretensioso tentar figurar o amor? Talvez - mas é tão pretensioso como intrínseco -.
Num primeiro contacto, foi esta a questão que associei a esta panóplia de obras de arte, provenientes dos mais diversos contextos. Fará sentido junto-las?
Posteriormente percebi, não é de encontrar sentido que se trata.
Esta exposição, patente de dia 11 de Novembro de 2018 até dia 17 de Fevereiro de 2019, no museu Berardo, procura acima de tudo, dar espaço para que coincidam inúmeras perspectivas, acolher todas as maneiras de expressão artística e de recepção dessas mesmas manifestações por parte dos espectadores. Há espaço para todos. O curador, Eric Corne (1959), começa por ser pintor, focando-se simultaneamente na curadoria. É importante vincar este background, de alguém que também produz e tem uma carreira artística, que tem sensibilidade para conjugar obras tão dispersas.
Ao entrar na inauguração, no ambiente uniformizado e neutro que inevitavelmente reverte para o White Cube, foi difícil entrar em contacto com as obras, compreender o seu encadeamento, o propósito. Uma coisa que me deixou reticente foi o facto de não haver informação adjacente, relativamente ao contexto de criação da obra na legenda, apenas composta por data e nome do autor. Contendo obras de mais de 70 artistas, senti que a exposição ganhava muito se inserisse algum enquadramento nas legendas das obras. Dias mais tarde senti necessidade de voltar à exposição, apercebi-me de que merecia uma abordagem mais íntima. Foi ai que percebi que é justamente essa a posição a tomar,
O nome da expoisção: Quelle Amour!? É um pergunta retórica, que não deve ser interpretada à procura de uma resposta ou definição para o amor, mas sim como um ensaio onde obras de um espectro cultural, temporal e espacial tão alargado, tanto convergem como divergem, tanto se corroboram como contrariam.
A intenção da exposição traduz-se numa narrativa assente na autonomia da obra de arte e na transcendência de espaço e do lugar.
Já Stendhal dizia: “Todos temos um amor nos nossos bolsos, por vezes esquecido, maltratado, acarinhado ou imprevisto, cuja única medida seja a desmesura.”, conforme citado na folha de sala.
Mas o que será para cada um de nós o amor?
Será a calma antes da tempestade, o momento, um olhar fugaz? Como ilustrado por David Hockney na Picture Emphasizing Stillness (fig. 1), um quadro que contém uma indicação para a sua leitura, um pleonasmo, que acentua a importância do momento: “They are perfectly safe This is a still”. Umas obras depois, deparam-nos com a mesma mensagem, uma ode ao instante, que é prolongado através da sua figuração. Encontramos esta ideia, da perspectiva de outro interprete, num suporte completamente diferente: Duane Michels e a sua sequência de fotografias Chance Meeting (fig. 2). São cerca de dez anos que separam estas duas obras, sendo que, esta exposição é compostas por outras de períodos bem mais distantes. Esta distinção entre as obras não serve para as autonomizar, mas sim para corroborar a transversalidade e intemporalidade desta temática. É significante referir, que a semana passada, Hockney, foi considerado o artista vivo a vender uma obra pelo valor mais alto de sempre. Este artista é apenas uma das personalidades prolíficas que validam a relevância de um tema que não carece de validação, nem nunca a vai encontrar. A riqueza desta exposição é inquestionável. Voltando à Picture Emphasizing Stillness, e ao seu carácter pictórico e iconográfico, podemos relacionar esta instrução de leitura da própria obra, com a pintura adjacente: Oedipus and the Sphinx after Ingres (fig. 3) de Francis Bacon. Esta pintura aponta, circunda, geme para que olhemos para a ferida, para a dor que é o amor no entendimento de Bacon. No piso de baixo, voltado-nos a deparar com a violência pelo pincel de Paula Rego. As associações são infindáveis e subjectivas.
Fig. 1) Picture Emphasizing Stillness,
David Hockney,
(1962)
Fig. 2) Chance Meeting,
Duane Michals,
(1970)
Fig. 3) Francis Bacon,
Oedipus and the Sphinx after Ingres,
(1983)
Esta coletânea integra obras ainda mais explicitas como a colectânea de desenhos, Love, de Raymond Pettibon, embidos de sarcasmo, cartonescos, que abordam o amor como uma luta, um discurso, uma linguagem. Obras para ser lidas, literal ou figurativamente. E que êxtase ler a colecção de cartas de amor de Anne-Marie Springer, tão grandiosas na sua intimidade.
São englobadas tanto obras que falam tão assumidamente do amor entre pares, como obras que falam do amor como auto descoberta. A auto descoberta através do outro, da libertação sexual de Nan Golding, ou a auto descoberta através da auto exploração de Chantal Akerman. Obras em que os dois sujeitos se cruzam, literalmente como na video instalação The Lovers (The Great Wall: Lovers at the Brink) de Marina Abramović & Ulay que, como casal, dramatizam e simulam o “ante-encontro” de dois apaixonados. A maneira como cremos que nos apresentamos e o que chega ao outro; serão estas concepções coincidentes? Será esta tentava de ilustrar o intangível que une estes artistas, e coincidentemente, os aproxima do espectador.
Seria absurdo enumerar a quantidade de obras presentes na exposição; penso que devemos adoptar a visita como um percurso, em que algumas obras nos tocaram, outras não tanto, percebendo que se o amor é “o” sentimento transversal, também é algo que tem significados tão distintos que se torna impossível não nos perdemos no meio das visões e interpretação com as quais somos inundados.
Ao sair da exposição não se levam conclusões, respostas, certezas, mas sim mais perguntas. Foi-nos instigada a introspecção. O amor, tão transversal quanto íntimo, tão paradoxal quanto as obras que coincidem neste espaço, na sua diversidade conceptual e proximidade física. Esta coexistência de termos opostos, é a gênese (e o fim) desta exposição. Será então um grito contra o narcisismo contemporâneo e percebemos tão bem isso quando nos aproximamos da instalação Turbulent de Shirin Neshat… Há aqui um confronto com o corromper inevitável do amor, latente nas obras Couple, passant (fig. 4) e Convulsion (fig. 5), de Eric Rondepierre. Obras que expõem uma decomposição inerente à natureza humana e são, simultaneamente, providas de uma enorme delicadeza.
Fig. 5) Convulsion
Eric Rondepierre
(1996-1998)
Esta exposição é uma viagem que reclama o ressurgimento de uma reflexão tão prudente como necessária em relação à forma como nos relacionamos com o outro e com nós mesmos. Viajamos no tempo, no espaço, para voltar ao cerne da questão. Basta olhar para as imponentes impressões em gelatina e sais de prata de Helena Almeida (fig. 6), para nos apercebermos da dimensão desta mensagem: “O meu trabalho é o meu corpo; o meu corpo o meu trabalho”. Porque as obras de arte são de facto uma extensão do artista, que nos aparece nu, exposto e nos urge a despir as convenções, os preconceitos. A sentir.
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