Kader Attia nasceu em Paris, em 1970, e cresceu entre a França e a Argélia, de onde a sua família é originária. Vive e trabalha entre Berlim e Paris. A sua obra, através de vários meios (instalação, escultura, vídeo, fotografia ou colagem), explora e questiona dimensões pessoais, culturais e históricas dos processos de integração e exclusão inerentes à experiência colonial e pós-colonial.
A noção de “reparação” [réparation], que Attia tem desenvolvido tanto no seu trabalho escrito como na sua obra visual, interliga noções de Género, Identidade Nacional e Cultural com a Arquitetura, a História e a Ciência. Os corpos, os objectos e as infrastruturas passam por processos de reparação que, para Attia, vão para além de uma simples restituição ao estado original da matéria ferida. A sutura, a recimentação, a colagem acrescentam camadas à identidade do objecto reparado. Análoga à técnica japonesa kintsugi, a noção de “reparação” pretende focar-se nas transformações que os corpos físicos, sociais e políticos atravessam, como são reparados e como surgem desse processo.
Antes de entrar na exposição, é-se confrontado com uma barreira que se extende desde a porta de entrada na exposição propriamente dita até à porta de saída. A obra, intitulada On n’emprisonne pas les idées (Não se aprisionam as ideias) é constituída por uma rede, que é reconhecível por ser usada como em obras na via pública, delimitando o espaço em construção, está rodeada e perfurada por pedras, evocando o motim. A ideia da paisagem urbana em construção ou reparação é interrompida por outra, de contestação política insurrectional.
Entrando na exposição, no primeiro corredor, cruzamo-nos com estruturas de madeira, assentes em blocos de cimento, que sugerem postes, suportes de edifícios demolidos. As peças foram criadas a partir de recolhas feitas em demolições na cidade de Berlim, onde vive o artista, materializando a noção de reparação. A história e memória da cidade é exposta a partir de parte do seu esqueleto demolido.
Prosseguindo, é notória a escuridão que envolve toda a exposição. Na sala procedente, a única fonte de luz são duas televisões em cantos opostos; no centro, um poste semelhante aos exibidos no corredor anterior e uma escultura em metal. Na televisão à direita, um excerto de Pépé le Moko, filme de 1937 realizado por Julien Duvivier, é reproduzido em loop, apresentando várias figuras com rostos e roupas algerianos. Já no ecrâ oposto, um excerto de Mélodie en sous-sol, realizado por Henri Verneuil em 1963, uma cena tensa desenrola-se numa paisagem urbana, francesa. A dicotomia criada pelos dois excertos é espelhada pelas peças esculturais que separam as televisões. A estrutura de metal ecoa os bairros habitacionais, grandes blocos de cimento perfurados por centenas de janelas, que são arquitetónicamente antagónicos às infrastruturas evocadas com o poste de madeira.
A noção de “reparação” [réparation], que Attia tem desenvolvido tanto no seu trabalho escrito como na sua obra visual, interliga noções de Género, Identidade Nacional e Cultural com a Arquitetura, a História e a Ciência. Os corpos, os objectos e as infrastruturas passam por processos de reparação que, para Attia, vão para além de uma simples restituição ao estado original da matéria ferida. A sutura, a recimentação, a colagem acrescentam camadas à identidade do objecto reparado. Análoga à técnica japonesa kintsugi, a noção de “reparação” pretende focar-se nas transformações que os corpos físicos, sociais e políticos atravessam, como são reparados e como surgem desse processo.
Antes de entrar na exposição, é-se confrontado com uma barreira que se extende desde a porta de entrada na exposição propriamente dita até à porta de saída. A obra, intitulada On n’emprisonne pas les idées (Não se aprisionam as ideias) é constituída por uma rede, que é reconhecível por ser usada como em obras na via pública, delimitando o espaço em construção, está rodeada e perfurada por pedras, evocando o motim. A ideia da paisagem urbana em construção ou reparação é interrompida por outra, de contestação política insurrectional.
Entrando na exposição, no primeiro corredor, cruzamo-nos com estruturas de madeira, assentes em blocos de cimento, que sugerem postes, suportes de edifícios demolidos. As peças foram criadas a partir de recolhas feitas em demolições na cidade de Berlim, onde vive o artista, materializando a noção de reparação. A história e memória da cidade é exposta a partir de parte do seu esqueleto demolido.
Prosseguindo, é notória a escuridão que envolve toda a exposição. Na sala procedente, a única fonte de luz são duas televisões em cantos opostos; no centro, um poste semelhante aos exibidos no corredor anterior e uma escultura em metal. Na televisão à direita, um excerto de Pépé le Moko, filme de 1937 realizado por Julien Duvivier, é reproduzido em loop, apresentando várias figuras com rostos e roupas algerianos. Já no ecrâ oposto, um excerto de Mélodie en sous-sol, realizado por Henri Verneuil em 1963, uma cena tensa desenrola-se numa paisagem urbana, francesa. A dicotomia criada pelos dois excertos é espelhada pelas peças esculturais que separam as televisões. A estrutura de metal ecoa os bairros habitacionais, grandes blocos de cimento perfurados por centenas de janelas, que são arquitetónicamente antagónicos às infrastruturas evocadas com o poste de madeira.
A sala imediatamente a seguir apresenta várias imagens, fotografias, colagens ou simplesmente materiais apropriados (ou reapropriados) que insistem no paralelismo anterior. Impressões de arquitetura tradicional argelina, como o casbá, são contrapostas com fotografias de bairros parisenienses. Telhados repletos de antenas parabólicas, algures na Algéria, são expostos ao lado de um ferro pejado de caracóis em hibernação, com um complexo habitacional como pano de fundo, num cenário apararentemente mais europeu. Há uma moldura que me desperta a curiosidade, contendo o que parece ser uma página arrancada reproduzindo a cabeça da Afrodite de Cnido, esculpida por Praxíteles. Um rasgo, que atravessa o olho e nariz da escultura, foi cosido com fio vermelho.
À medida que caminho em direção à sala seguinte, o som dos excertos reproduzidos nas televisões perde força, sendo substituído por sons de maquinaria, repetitivos, que originam de uma outra sala mais adiante.
Les héritages du corps: les corps postcolonial, é apresentado na sala seguinte, ao lado de uma escultura sem título, uma cadeira de plástico cujo assento partido foi cosido, remetendo de imediato para a cabeça da Afrodite na sala anterior.
Prosseguindo, é-se confrontando com a instalação Kasbah, constituída por materiais de construção que compõem o telhado de um bairro de lata. A presença de antenas parabólicas lembra a fotografia que figurava na sala anterior. O caminhar é inconscientemente cauteloso, como se a qualquer momento fosse possível cair na sala de estar de alguém. O conceito de “casbá” (que se deu origem à palavra portuguesa “alcáçova”) remete para uma estrutura defensiva, de cariz bélico, típica do Norte de África. A reapropriação do conceito é, ao mesmo tempo, uma apropriação do bairro de lata, das condições que o geram.
Na mesma sala, o filme La Tour Robespierre é reproduzido. Em 2 minutos e 14 segundos, um drone filma a fachada do edíficio de habitação mais alto de Vitry-sur-Seine. O plano, que inicialmente contém apenas janelas, evolui para um panorama da cidade. Nos últimos segundos é possível ter a sensação de que estamos no bairro de lata mais alto do mundo. Deve notar-se que, neste momento da exposição, há um cheiro no ar que atribuí inicialmente aos materiais usados na instalação. Essa particularidade e a relação física que Kasbah mantém com o espectador sugerem-me que acabo de transpor uma barreira.
O corredor seguinte exibe fotografias de Christine des îles, Olivia de Blida, Mounira l’oranaise e Kinuna l’algéroise, mulheres transexuais argelinas em contextos públicos, que me remetem para Théo Luhaka. A mera presença do corpo assumidamente emasculado na via pública funciona como um statement político, especialmente quando esse ato coloca o próprio corpo em perigo, tornando-o um alvo para forças repressivas. A noção de corpos reparados, transformados em conformidade com o género, remetem-me de imediato para a cabeça da Afrodite e para a cadeira.
Curiosamente, a peça seguinte, que quase passa despercebida, parte do ponto de vista oposto. Na parede branca do corredor, escrita a giz branco, encontra-se a frase “Resistir é permanecer invisível”. Contraposta à ideia da adoção livre de uma identidade destoante, a ideia da resistência invisível, subversiva, que pretende combater o sistema através da sua infiltração neste.
É neste mesmo corredor que se descobre a origem dos sons de maquinaria e do cheiro desconhecido. Uma betoneira laranja labora ininterruptamente, emanando o cheiro do cravinho, do qual está cheia. Parfum D’Exil sugere nostalgia; o seu carácter repetitivo e giratório, e a sua apresentação sob o holofote, criando uma barreira de luz, evocam a própria ideia de memória, de recordação. O cravinho, enquanto elemento culinário, remetem-me para uma figura maternal, e a betoneira, enquanto ferramenta de trabalho, para uma figura paternal. Por outro lado, o betão, misturado nesta máquina, está presente nas alusões arquitetónicas anteriores, assim como nas suas ligações à mão de obra migrante. A construção de uma cidade é, assim, análoga à construção de memória e de identidade. Parfum d’Exil conta a história pessoal do artista mas pode contar outra, ou todas as histórias de exílio.
Imediatamente a seguir, uma estrutura, sem título, composta por dois espelhos que se enfrentam, um sapato masculino junto a um e um sapato feminino junto ao outro, continuam a história iniciada por Parfum d’Exil. Os espelhos replicam os sapatos e replicam as replicações ad infinitum, apresentando um sem-número de casais anónimos. Cada casal é uma história, sempre a mesma, que se repete como os os movimentos da betoneira.
Os sapatos incompatíveis propõem uma leitura em sintonia com as fotografias de mulheres transexuais. A construção, reparação, de uma identidade transexual partindo da relação entre a aparência masculina e feminina, resultando numa síntese que os espelhos não revelam. Será, porventura, mais correto dizer que os próprios espelhos, e não o que estes mostram, são a síntese resultante.
Na seguinte sala, o olhar é atraído para Untitled (couscous), uma peça que, sem a leitura do título, se assume ser composta de areia. Há como que uma vista aérea de um povoado no meio do deserto. A semelhança com um outra obra de Attia, Untitled (Ghardaïa), remete para a arquitetura norte africana e a sua influência na arquitetura de Le Corbusier e, no fundo, para a influência que os povos colonizados tiveram sobre os seus colonizadores. O uso de couscous reforça a ideia de re-apropriação, dada a sua presença comum através do Mediterrâneo mas origem e presença ascestral no Magrebe. O elemento culinário formando a base da peça também é de notar.
Atravessando duas cortinas espessas, que abafam o som da betoneira, chegamos à sala final onde é reproduzido Réfléchir la memoire, um vídeo de 48 minutos, de natureza semelhante a Les héritages du corps: les corps postcolonial, apresentado numa sala anterior. Vários intervenientes falam da noção de membro fantasma, contrapondo-a a situações semelhantes a nível coletivo, social e histórico.
O membro fantasma é uma presença ausente, um espaço que alberga uma falta. Em retrospectiva, esta presença é explorada em toda a exposição, de uma forma ou outra. A identidade migrante que se forma em volta do vazio criado pela confrontação com uma nova cultura. A identidade transexual moldada pela habitação no corpo errado, onde existem orgãos em falta. O próprio fio que repara a página que reproduz a cabeça da Afrodite de Cnido e a cadeira partida junto a Les héritages du corps: les corps postcolonial, implica uma cauterização.
Abandonando a sala, chegamos finalmente ao final da exposição. On n’emprisonne pas les idées exige ser contornado, mais uma vez. O ponto de vista da saída sugere um loop que não me era visível à entrada. Horas mais tarde, o café tem um travo estranho, como que a cravinho. O cheiro está entrenhado nas nossas roupas e cabelos. A exposição terminou quando deixei de o sentir, como o esquecimento de uma memória.
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