sexta-feira, 30 de novembro de 2018

cineclube: a curta



O Cineclube de Arcos de Valdevez é um projeto que pretende defender, produzir e divulgar o cinema e envolver as restantes artes, abrangendo todo o concelho de Arcos de Valdevez, vila pertencente ao distrito de Viana do Castelo. É um projeto ainda verde mas promete diversas iniciativas, desde sessões de cinema, debates, workshops, palestras, atividades culturais e um forte envolvimento com a comunidade escolar. 

Acompanhada por um grupo de amigas, fui á exibição de uma curta-metragem "eso no 
es un olivo" de Carlos Arteiro (uma iniciativa do Cineclube de Arcos de Valdevez com o Município de Arcos de Valdevez), em que posteriormente foi exibido o filme "Assim Nasce uma Estrela”. Todas as semanas há exibição de filmes no auditório da Casa das Artes, aproveitando assim o cineclube para mostrar e divulgar obras de artistas portugueses. 
O auditório dispõe de 300 lugares sentados, o que é bastante sustentável para este tipo 
de evento. Contém ainda bom equipamento técnico para uma melhor projeção das obras.























Carlos Arteiro é um dos finalistas do Prémio de fotografia contemporânea NOVO BANCO Revelação 2018 e o seu trabalho poderá ser visto em breve no Museu de Serralves. “Eso no es un olive” (2017) de Carlos Arteiro foi apresentada pela primeira vez em 2017 no Curtas Vila do Conde - International Film Festival. 

Uma curta metragem que demonstra como um exercício teórico pode resultar de um exercício físico. O método atual de colheita da azeitona manda que se coloque um dispositivo vibrador no seu tronco. Esta foi a imagem que ativou o filme. Através da câmera, que é usada como um dispositivo vibratório colocado nas oliveiras para a colheita de seus frutos, resulta uma compilação de imagens únicas e enigmáticas. O seu tremer faz com que haja um foco e desfoco rápido, acompanhado com um ruído mecânico cíclico que une as imagens. Leva-nos à não perceção do que está a acontecer. Com imagens de grande detalhe e visualmente envolventes uma voz feminina guia-nos e integra-nos no filme. Carlos Arteiro cria uma obra que se aproxima a um exercício para os olhos.






















Sendo a primeira vez que estive num evento do cineclube espero tornem estas iniciativas regulares, e que continuem a mostrar o cinema português à população de Arcos de Valdevez. Há tanto de bom no cinema português e nós por vezes fechamos os olhos ao que é feito por nós, quando devíamos investir mais na sua divulgação a nível nacional. O Cineclube vai exibir o ciclo "Imagens Familiares", um conjunto de curtas-metragens da Competição Verdes Anos do doclisboa 2017, durante o mês de dezembro. 



Local: Auditório Casa das Artes, Arcos de Valdevez
Data da Sessão: 18 de Novembro
Entrada: 3€


   


quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Benvenuti nella Casa Depero!

Ai confini con le Alpi austriache, a Rovereto, in provincia di Trento, è situato il più famoso Museo del Futurismo italiano: la Casa d’arte futurista Depero. 
La Casa d’arte racchiude ben 3000 opere dell’artista trentino Fortunato Depero che la fondò nel 1957 in accordo con la moglie Rosetta Amadori. Il luogo prescelto fu la loro casa situata nel centro storico di Rovereto. L’edificio si sviluppa su tre piani ed è poco distante dal Museo di Arte moderna e contemporanea, il MART, che in questi anni ha reso famosa Rovereto anche a livello internazionale.

Sala Rovereto, primo piano



Di dimensioni ridotte la Casa d'arte futurista Depero espone una quantità di opere 
sufficienti ad allestire un museo di doppia metratura. Oltre per la quantità delle opere 
si rimane affascinati dalla versatilità dell'artista. Personaggio poliedrico e di multiforme creatività realizzò lavori variegati dall’interior design alla scenografia, dalla pittura alla propaganda, dalla realizzazione di marionette e giocattoli a numerosi arazzi. Le dimensioni ridotte del museo dunque sottolineano l'originalità di Depero poiché pongono in uno spazio ridotto opere di diversa fattura, in tal modo viene risaltata immediatamente la versatilità 
e la multiculturalità dell'artista. 

Dei tre piani presenti nella Casa d'arte futurista Depero solo il primo venne realizzato dall'artista. I due piani restanti furono recuperati grazie a un restauro in anni più recenti ad opera dell'architetto Renato Rizzi. La diversa datazione di questi ultimi livelli si percepisce automaticamente poiché, in essi, le pareti sono più elevate, le stanze più ampie e di conseguenza l'illuminazione è più intensa. I piani superiori del museo dunque risultano avere un allestimento molto moderno a confronto del primo piano progettato da Depero stesso.


Sala "Eco della stampa", primo piano

Sala 5 e 6, secondo piano


La diversa ampiezza delle sale coincide con le dimensioni delle opere artistiche. Il primo piano ospita le esposizioni permanenti denominate "Eco della Stampa" e "Sala Rovereto" 
in cui vengono esposti, in magnifiche vetrine lignee, manifesti, libri e documenti futuristi.
Nei piani successivi vengono presentate a rotazione opere di maggiori dimensioni come dipinti, tarsie in panno e giocattoli. Per questo motivo durante la visita si percepisce un aumento della forza grafica delle opere dell'artista. Questa sensazione non è data dall'opera
in sé ma dalla sua collocazione. La presenza di ampie pareti bianche carica di energia l'oggetto enfatizzando il forte dinamismo tipico delle opere di Depero. 


Quando si entra nella Casa d’arte Depero si respira immediatamente il clima culturale 
del Futurismo sia per lo spazio dato agli scritti autografi di Tommaso Marinetti che ne richiamano la poetica e lo spirito artistico delle avanguardie, che per la presenza di oggetti stravaganti che scatenano emozioni tra le più varie. Nella prima sala "Eco della stampa" Depero decise di raggruppare documenti e testimonianze del futurismo italiano. In essa 
è possibile ammirare il libro imbullonato “Depero futurista” del 1927 e molti altri esempi 
di tipografia espressiva come le “tavole parolibere". Pur essendo opere artistiche di fama internazionale esse non adombrano le successive sale. Difatti qualsiasi oggetto all'interno della mostra sembra avere la stessa forza espressiva che si parli di un'illustrazione per G. Clavel o di pupazzi e marionette o di arazzi di grandi dimensioni. 



Illustrazione per G. Clavel



Il museo può essere considerato un museo monografico, riesce a dare un'idea completa 
della figura dell'artista e inoltre grazie alle opere di Depero ci si sente trasportati in un mondo poetico, dinamico e fortemente iconico. La Casa si presta ad accogliere artisti, cultori d’arte ma anche profani, persone curiose e di tutte le età, dai bambini agli anziani perché la creatività e in generale l’arte di costruire è il filo conduttore del Museo in grado di attirare attenzione ed entusiasmo nei visitatori di tutte le età.


Marionette Depero




quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Voltar a ver João (Vieira)



 Acontece de 31 de outubro a 8 de dezembro no Teatro da Politécnica, junto ao Jardim Botânico, a Exposição Voltar a ver João (Vieira). Trata-se de uma homenagem ao pintor português falecido em 2009. A exposição é organizada em 6 grandes telas de pintura com um trabalho que transita entre a tipografia e a pintura abstrata.





João Rodrigues Vieira foi um artista plástico e pintor português. Participou do Grupo KWY(1958-1968), assimilando as linguagens abstractas e gestualistas que consolidaram o seu interesse pela pintura letrista. Foi um mestre em transpor poemas e letras para telas espessamente coloridas ou para objectos tridimensionais em grande escala. Vieira troca o pincel pela espátula para encontrar novas texturas em telas que, desligadas já da figuração inicial, vão ao encontro do lettrisme francês e dos seus estudos de caligrafia, coroando um interesse pelo mundo literário e pela articulação entre palavra e imagem. Fonte: https://gulbenkian.pt/museu/artist/joao-vieira



Esta é a frase que existe na entrada da sala de exposições do Teatro da Politécnica. Com esta mensagem somos convi-dados a adentrar na exposição. A surpresa é inevitável devido ao contraste visual de cores, desenhos geométricos e letras gigantes. Aos poucos captamos as mensagens que o artista tenta passar ao expectador e passamos a entendemos a dinâmica e a linguagem predominante na obra do artista: linhas coloridas com técnica espatulada onde juntam-se cores e texturas em movimentos gestuais vigorosos e precisos, revelando uma pintura muito cuidadosa com a forma final.



Estes desenhos figurativos em formas abstratas e linhas com diversos pigmentos de cores transformam-se em palavras como música, dança, teatro, etc. Ao percorrermos a exposição somos levados a um mundo lúdico entre letras e imagens. O quadro intitulado “Teatro” está no centro da sala negra ao fundo e chama a atenção pelo impacto de quem entra no local. Com as laterais pintadas em preto faz um contraponto aos grandes “Ts” coloridos e diferencia-se das outras telas que seguem do lado esquerdo e direito. Constata-se que o interesse do artista esta na letra e na forma como elas estão organizadas dentro do contexto, na maneira como os elementos tipográficos comportam-se dentro da composição da imagem.





           No lado oposto a tela “teatro” ainda podemos ver, em meio a esta enorme paleta de cores, uma tela intitulada “pintura” composta por somente preto e branco. Teria o pintor insinuado que esta tela monocromática estaria em desajuste com os outros temas? Ou seria uma demonstração de que a composição não interfere nem diminui as outras áreas da cultura? 





Aprendemos com João, sobretudo que, com um certo apuro, a imagem pode ser lida e o texto visto, se soubermos decifrar isto estaremos dando um passo à frente. Esta exposição é para ser descoberta. É para voltar a ver João Vieira.


A Exposição Voltar a ver o João (Vieira) acontece de 31 de outubro a 8 de dezembro, de Terça a sexta, das 17h até final do espetáculo em cena | sábado, das 15h até final do espetáculo em cena. Entrada livre.
Teatro da Politécnica - Rua da Escola Politécnica, 56 - Lisboa
Mais informações: www.artistasunidos.pt


segunda-feira, 26 de novembro de 2018

As Raízes Também Se Criam No Betão

Kader Attia nasceu em Paris, em 1970, e cresceu entre a França e a Argélia, de onde a sua família é originária. Vive e trabalha entre Berlim e Paris. A sua obra, através de vários meios (instalação, escultura, vídeo, fotografia ou colagem), explora e questiona dimensões pessoais, culturais e históricas dos processos de integração e exclusão inerentes à experiência colonial e pós-colonial.

A noção de “reparação” [réparation], que Attia tem desenvolvido tanto no seu trabalho escrito  como na sua obra visual, interliga noções de Género, Identidade Nacional e Cultural com a Arquitetura, a História e a Ciência. Os corpos, os objectos e as infrastruturas passam por processos de reparação que, para Attia, vão para além de uma simples restituição ao estado original da matéria ferida. A sutura, a recimentação, a colagem acrescentam camadas à identidade do objecto reparado. Análoga à técnica japonesa kintsugi, a noção de “reparação” pretende focar-se nas transformações que os corpos físicos, sociais e políticos atravessam, como são reparados e como surgem desse processo.

Antes de entrar na exposição, é-se confrontado com uma barreira que se extende desde a porta de entrada na exposição propriamente dita até à porta de saída. A obra, intitulada On n’emprisonne pas les idées (Não se aprisionam as ideias) é constituída por uma rede, que é reconhecível por ser usada como em obras na via pública, delimitando o espaço em construção, está rodeada e perfurada por pedras, evocando o motim. A ideia da paisagem urbana em construção ou reparação é interrompida por outra, de contestação política insurrectional.

Entrando na exposição, no primeiro corredor, cruzamo-nos com estruturas de madeira, assentes em blocos de cimento, que sugerem postes, suportes de edifícios demolidos. As peças foram criadas a partir de recolhas feitas em demolições na cidade de Berlim, onde vive o artista, materializando a noção de reparação. A história e memória da cidade é exposta a partir de parte do seu esqueleto demolido.

Prosseguindo, é notória a escuridão que envolve toda a exposição. Na sala procedente, a única fonte de luz são duas televisões em cantos opostos; no centro, um poste semelhante aos exibidos no corredor anterior e uma escultura em metal. Na televisão à direita, um excerto de Pépé le Moko, filme de 1937 realizado por Julien Duvivier, é reproduzido em loop, apresentando várias figuras com rostos e roupas algerianos. Já no ecrâ oposto, um excerto de Mélodie en sous-sol, realizado por Henri Verneuil em 1963, uma cena tensa desenrola-se numa paisagem urbana, francesa. A dicotomia criada pelos dois excertos é espelhada pelas peças esculturais que separam as televisões. A estrutura de metal ecoa os bairros habitacionais, grandes blocos de cimento perfurados por centenas de janelas, que são arquitetónicamente antagónicos às infrastruturas evocadas com o poste de madeira.



A sala imediatamente a seguir apresenta várias imagens, fotografias, colagens ou simplesmente materiais apropriados (ou reapropriados) que insistem no paralelismo anterior. Impressões de arquitetura tradicional argelina, como o casbá, são contrapostas com fotografias de bairros parisenienses. Telhados repletos de antenas parabólicas, algures na Algéria, são expostos ao lado de um ferro pejado de caracóis em hibernação, com um complexo habitacional como pano de fundo, num cenário apararentemente mais europeu. Há uma moldura que me desperta a curiosidade, contendo o que parece ser uma página arrancada reproduzindo a cabeça da Afrodite de Cnido, esculpida por Praxíteles. Um rasgo, que atravessa o olho e nariz da escultura, foi cosido com fio vermelho.


À medida que caminho em direção à sala seguinte, o som dos excertos reproduzidos nas televisões perde força, sendo substituído por sons de maquinaria, repetitivos, que originam de uma outra sala mais adiante.

Les héritages du corps: les corps postcolonial, é apresentado na sala seguinte, ao lado de uma escultura sem título, uma cadeira de plástico cujo assento partido foi cosido, remetendo de imediato para a cabeça da Afrodite na sala anterior.


O filme, de 2018, é composto por entrevistas a quatro descendentes de povos colonizados, onde estes abordam o caso de Théo Luhaka, um jovem de origem congolesa que, a 2 de Fevereiro de 2017, foi vitíma de um episódio de violência polícial; tendo este caso como ponto de partida, abordam a questão do corpo emigrante, africano, de como este foi e é violentado às mãos de organismos repressivos, assim como se insere na paisagem urbana e social, procurando misturar-se e desaparecer na multidão ou afirmar-se através de um grupo distinto. A cadeira cosida evoca a violência policial, de um corpo partido por um golpe que exige a submissão, mas também a identidade reparada, binacional, do emigrante. A ferida apresentada é também evocativa do processo de assimilação pelo qual o estrangeiro passa para se inserir numa cultura que lhe é mais ou menos estranha, sendo ela própria formadora de identidade.



Prosseguindo, é-se confrontando com a instalação Kasbah, constituída por materiais de construção que compõem o telhado de um bairro de lata. A presença de antenas parabólicas lembra a fotografia que figurava na sala anterior. O caminhar é inconscientemente cauteloso, como se a qualquer momento fosse possível cair na sala de estar de alguém. O conceito de “casbá” (que se deu origem à palavra portuguesa “alcáçova”) remete para uma estrutura defensiva, de cariz bélico, típica do Norte de África. A reapropriação do conceito é, ao mesmo tempo, uma apropriação do bairro de lata, das condições que o geram.



Na mesma sala, o filme La Tour Robespierre é reproduzido. Em 2 minutos e 14 segundos, um drone filma a fachada do edíficio de habitação mais alto de Vitry-sur-Seine. O plano, que inicialmente contém apenas janelas, evolui para um panorama da cidade. Nos últimos segundos é possível ter a sensação de que estamos no bairro de lata mais alto do mundo. Deve notar-se que, neste momento da exposição, há um cheiro no ar que atribuí inicialmente aos materiais usados na instalação. Essa particularidade e a relação física que Kasbah mantém com o espectador sugerem-me que acabo de transpor uma barreira.



O corredor seguinte exibe fotografias de Christine des îles, Olivia de Blida, Mounira l’oranaise e Kinuna l’algéroise, mulheres transexuais argelinas em contextos públicos, que me remetem para Théo Luhaka. A mera presença do corpo assumidamente emasculado na via pública funciona como um statement político, especialmente quando esse ato coloca o próprio corpo em perigo, tornando-o um alvo para forças repressivas. A noção de corpos reparados, transformados em conformidade com o género, remetem-me de imediato para a cabeça da Afrodite e para a cadeira.
Curiosamente, a peça seguinte, que quase passa despercebida, parte do ponto de vista oposto. Na parede branca do corredor, escrita a giz branco, encontra-se a frase “Resistir é permanecer invisível”. Contraposta à ideia da adoção livre de uma identidade destoante, a ideia da resistência invisível, subversiva, que pretende combater o sistema através da sua infiltração neste.


É neste mesmo corredor que se descobre a origem dos sons de maquinaria e do cheiro desconhecido. Uma betoneira laranja labora ininterruptamente, emanando o cheiro do cravinho, do qual está cheia. Parfum D’Exil sugere nostalgia; o seu carácter repetitivo e giratório, e a sua apresentação sob o holofote, criando uma barreira de luz, evocam a própria ideia de memória, de recordação. O cravinho, enquanto elemento culinário, remetem-me para uma figura maternal, e a betoneira, enquanto ferramenta de trabalho, para uma figura paternal. Por outro lado, o betão, misturado nesta máquina, está presente nas alusões arquitetónicas anteriores, assim como nas suas ligações à mão de obra migrante. A construção de uma cidade é, assim, análoga à construção de memória e de identidade. Parfum d’Exil conta a história pessoal do artista mas pode contar outra, ou todas as histórias de exílio.


Imediatamente a seguir, uma estrutura, sem título, composta por dois espelhos que se enfrentam, um sapato masculino junto a um e um sapato feminino junto ao outro, continuam a história iniciada por Parfum d’Exil. Os espelhos replicam os sapatos e replicam as replicações ad infinitum, apresentando um sem-número de casais anónimos. Cada casal é uma história, sempre a mesma, que se repete como os os movimentos da betoneira.
Os sapatos incompatíveis propõem uma leitura em sintonia com as fotografias de mulheres transexuais. A construção, reparação, de uma identidade transexual partindo da relação entre a aparência masculina e feminina, resultando numa síntese que os espelhos não revelam. Será, porventura, mais correto dizer que os próprios espelhos, e não o que estes mostram, são a síntese resultante.

Na seguinte sala, o olhar é atraído para Untitled (couscous), uma peça que, sem a leitura do título, se assume ser composta de areia. Há como que uma vista aérea de um povoado no meio do deserto. A semelhança com um outra obra de Attia, Untitled (Ghardaïa), remete para a arquitetura norte africana e a sua influência na arquitetura de Le Corbusier e, no fundo, para a influência que os povos colonizados tiveram sobre os seus colonizadores. O uso de couscous reforça a ideia de re-apropriação, dada a sua presença comum através do Mediterrâneo mas origem e presença ascestral no Magrebe. O elemento culinário formando a base da peça também é de notar.

Atravessando duas cortinas espessas, que abafam o som da betoneira, chegamos à sala final onde é reproduzido Réfléchir la memoire, um vídeo de 48 minutos, de natureza semelhante a Les héritages du corps: les corps postcolonial, apresentado numa sala anterior. Vários intervenientes falam da noção de membro fantasma, contrapondo-a a situações semelhantes a nível coletivo, social e histórico.
O membro fantasma é uma presença ausente, um espaço que alberga uma falta. Em retrospectiva, esta presença é explorada em toda a exposição, de uma forma ou outra. A identidade migrante que se forma em volta do vazio criado pela confrontação com uma nova cultura. A identidade transexual moldada pela habitação no corpo errado, onde existem orgãos em falta. O próprio fio que repara a página que reproduz a cabeça da Afrodite de Cnido e a cadeira partida junto a Les héritages du corps: les corps postcolonial, implica uma cauterização.

Abandonando a sala, chegamos finalmente ao final da exposição. On n’emprisonne pas les idées exige ser contornado, mais uma vez. O ponto de vista da saída sugere um loop que não me era visível à entrada. Horas mais tarde, o café tem um travo estranho, como que a cravinho. O cheiro está entrenhado nas nossas roupas e cabelos. A exposição terminou quando deixei de o sentir, como o esquecimento de uma memória.


quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Quelle amour!? (Que amor!?)

Não será um pouco pretensioso tentar figurar o amor? Talvez - mas é tão pretensioso como intrínseco -.
Num primeiro contacto, foi esta a questão que associei a esta panóplia de obras de arte, provenientes dos mais diversos contextos. Fará sentido junto-las?
Posteriormente percebi, não é de encontrar sentido que se trata. 

Esta exposição, patente de dia 11 de Novembro de 2018 até dia 17 de Fevereiro de 2019, no museu Berardo, procura acima de tudo, dar espaço para que coincidam inúmeras perspectivas, acolher todas as maneiras de expressão artística e de recepção dessas mesmas manifestações por parte dos espectadores. Há espaço para todos. O curador, Eric Corne (1959), começa por ser pintor, focando-se simultaneamente na curadoria. É importante vincar este background, de alguém que também produz e tem uma carreira artística, que tem sensibilidade para conjugar obras tão dispersas.
Ao entrar na inauguração, no ambiente uniformizado e neutro que inevitavelmente reverte para o White Cube, foi difícil entrar em contacto com as obras, compreender o seu encadeamento, o propósito. Uma coisa que me deixou reticente foi o facto de não haver informação adjacente, relativamente ao contexto de criação da obra na legenda, apenas composta por data e nome do autor. Contendo obras de mais de 70 artistas, senti que a exposição ganhava muito se inserisse algum enquadramento nas legendas das obras. Dias mais tarde senti necessidade de voltar à exposição, apercebi-me de que merecia uma abordagem mais íntima. Foi ai que percebi que é justamente essa a posição a tomar,
O nome da expoisção: Quelle Amour!? É um pergunta retórica, que não deve ser interpretada à procura de uma resposta ou definição para o amor, mas sim como um ensaio onde obras de um espectro cultural, temporal e espacial tão alargado, tanto convergem como divergem, tanto se corroboram como contrariam. 
A intenção da exposição traduz-se numa narrativa assente na autonomia da obra de arte e na transcendência de espaço e do lugar.
Já Stendhal dizia: “Todos temos um amor nos nossos bolsos, por vezes esquecido, maltratado, acarinhado ou imprevisto, cuja única medida seja a desmesura.”, conforme citado na folha de sala.

Mas o que será para cada um de nós o amor? 
Será a calma antes da tempestade, o momento, um olhar fugaz? Como ilustrado por David Hockney na Picture Emphasizing Stillness (fig. 1), um quadro que contém uma indicação para a sua leitura, um pleonasmo, que acentua a importância do momento: “They are perfectly safe This is a still”. Umas obras depois, deparam-nos com a mesma mensagem, uma ode ao instante, que é prolongado através da sua figuração. Encontramos esta ideia, da perspectiva de outro interprete, num suporte completamente diferente: Duane Michels e a sua sequência de fotografiaChance Meeting (fig. 2). São cerca de dez anos que separam estas duas obras, sendo que, esta exposição é compostas por outras de períodos bem mais distantes. Esta distinção entre as obras não serve para as autonomizar, mas sim para corroborar a transversalidade e intemporalidade desta temática. É significante referir, que a semana passada, Hockney, foi considerado o artista vivo a vender uma obra pelo valor mais alto de sempre. Este artista é apenas uma das personalidades prolíficas que validam a relevância de um tema que não carece de validação, nem nunca a vai encontrar. A riqueza desta exposição é inquestionável. Voltando à Picture Emphasizing Stillness, e ao seu carácter pictórico e iconográfico, podemos relacionar esta instrução de leitura da própria obra, com a pintura adjacente: Oedipus and the Sphinx after Ingres (fig. 3) de Francis Bacon. Esta pintura aponta, circunda, geme para que olhemos para a ferida, para a dor que é o amor no entendimento de Bacon. No piso de baixo, voltado-nos a deparar com a violência pelo pincel de Paula Rego. As associações são infindáveis e subjectivas.

Fig. 1) Picture Emphasizing Stillness,
David Hockney,
(1962)

Fig. 2) Chance Meeting,
Duane Michals,
(1970)

Fig. 3) Francis Bacon,
Oedipus and the Sphinx after Ingres,
 (1983)

Esta coletânea integra obras ainda mais explicitas como a colectânea de desenhos, Love, de Raymond Pettibon, embidos de sarcasmo, cartonescos, que abordam o amor como uma luta, um discurso, uma linguagem. Obras para ser lidas, literal ou figurativamente. E que êxtase ler a colecção de cartas de amor de Anne-Marie Springer, tão grandiosas na sua intimidade.
São englobadas tanto obras que falam tão assumidamente do amor entre pares, como obras que falam do amor como auto descoberta. A auto descoberta através do outro, da libertação sexual de Nan Golding, ou a auto descoberta através da auto exploração de Chantal Akerman. Obras em que os dois sujeitos se cruzam, literalmente como na video instalação The Lovers (The Great Wall: Lovers at the Brink) de Marina Abramović & Ulay que, como casal, dramatizam e simulam o “ante-encontro” de dois apaixonados. A maneira como cremos que nos apresentamos e o que chega ao outro; serão estas concepções coincidentes? Será esta tentava de ilustrar o intangível que une estes artistas, e coincidentemente, os aproxima do espectador. 
Seria absurdo enumerar a quantidade de obras presentes na exposição; penso que devemos adoptar a visita como um percurso, em que algumas obras nos tocaram, outras não tanto, percebendo que se o amor é “o” sentimento transversal, também é algo que tem significados tão distintos que se torna impossível não nos perdemos no meio das visões e interpretação com as quais somos inundados. 
Ao sair da exposição não se levam conclusões, respostas, certezas, mas sim mais perguntas. Foi-nos instigada a introspecção. O amor, tão transversal quanto íntimo, tão paradoxal quanto as obras que coincidem neste espaço, na sua diversidade conceptual e proximidade física. Esta coexistência de termos opostos, é a gênese (e o fim) desta exposição. Será então um grito contra o narcisismo contemporâneo e percebemos tão bem isso quando nos aproximamos da instalação Turbulent de Shirin Neshat… Há aqui um confronto com o corromper inevitável do amor, latente nas obras Couple, passant (fig. 4) e Convulsion (fig. 5), de Eric Rondepierre. Obras que expõem uma decomposição inerente à natureza humana e são, simultaneamente, providas de uma enorme delicadeza.


Fig. 4) Couple, passant
Eric Rondepierre
(1996-1998)

Fig. 5) Convulsion
Eric Rondepierre
(1996-1998)

Esta exposição é uma viagem que reclama o ressurgimento de uma reflexão tão prudente como necessária em relação à forma como nos relacionamos com o outro e com nós mesmos. Viajamos no tempo, no espaço, para voltar ao cerne da questão. Basta olhar para as imponentes impressões em gelatina e sais de prata de Helena Almeida (fig. 6), para nos apercebermos da dimensão desta mensagem: “O meu trabalho é o meu corpo; o meu corpo o meu trabalho”. Porque as obras de arte são de facto uma extensão do artista, que nos aparece nu, exposto e nos urge a despir as convenções, os preconceitos. A sentir. 
Como escreveu Eric Corne, num texto anterior à criação de Quelle Amour?!: “What is seeing, if it is not waiting to be perceived.”. Reflexão que, estranhamente, encaixa tão bem na definição desta exposição.


Fig. 6) S/ título
Helena Almeida,
(2010)

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

O mito, lógico...























Ao chegar à Rua do Patrocínio não conseguia encontrar a galeria. Perguntei no café mais próximo onde podia visitá-la. “Atrás dessa carrinha” respondeu, apontando para a mesma que tapava a entrada. No contorno do pára-choques, janelas amplas serviam de tela para um ambiente pop e surrealista que coexistia no interior. Num primeiro plano, destacava-se um mural de uma paisagem desertificada, consolidada com alguns elementos adjacentes, como por exemplo um chinelo “perdido” e mais perto da entrada uma águia, empoleirada no pedestal, acolhia o visitante no espaço que a integrava.  As peças não pareciam ter um ligação na primeira volta que fiz às salas, mas essa discrepância entre os objetos foi desvanecendo à medida que a temática do mito, de forma sublime, se tornava mais perceptiva. O aglomerado das diferentes singularidades presentes colocou-me de certa forma a viajar entre várias dimensões estéticas e correntes artísticas, nomeadamente (como já escrevi) o surrealismo e a pop-art manifestado nas peças de Neil Raitt. As composições de paisagens naturalistas, repetidas de forma exaustiva, contrastavam de forma bastante contemporânea e inteligente com a “banalidade” do suporte utilizado (o chinelo).  A riqueza plástica das diferentes técnicas do que se encontrava exposto, desde pintura, passando por escultura e vídeo, fez com que nem sequer me apercebesse da mudança de acervo expositivo que estava a acontecer durante o meu percurso. 



















Marius Bercea, Hannah Greely, Alex Hubbard, William Leavitt, Jon Pestoni, Neil Raitt, Claire Tabouret, Sean Townley